Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma rara coleção feita com alegria

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin chega hoje à inauguração. Abriga-a monumental edificação com 20 mil m² em concreto claro, moldada em linhas assimétricas, sinuosas e despojadas, logo à entrada principal do câmpus da USP, no início da Avenida Luciano Gualberto. Dividida em dois módulos, um deles cabe à Brasiliana e o outro ao acervo perfeitamente compatível do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).

Nesta coleção, única no País, concentram-se 80 anos de dedicação pessoal: o colecionador comprou seu primeiro item aos 13 anos e, como viveria até os 95, é fácil fazer a conta. São primeiras edições e originais manuscritos, incunábulos, mapas, vasto acervo de jornais e revistas antigos, provas tipográficas, correspondência, diários, gravuras, documentos de iconografia e álbuns de arte.

Após passar muitos anos pensando no destino que daria a seus tesouros, preocupação usual em quem gosta de livros, hesitando entre criar uma fundação ou doar a uma e outra instituição dentre as muitas que o assediavam (algumas estrangeiras), Mindlin decidiu contemplar a universidade pública em que ele, a esposa e os quatro filhos do casal fizeram seus estudos. Desse modo, visava à democratização do acesso ao cabedal que acumulara. Para a USP foram 30 mil títulos ou 45 mil volumes, enquanto cerca de 12 mil externos à Brasiliana ficariam para os herdeiros.

As negociações, delicadas e bizantinas, enfrentando e superando obstáculos inimagináveis, tardariam por sete anos, até que o acordo fosse firmado em sessão solene na Reitoria da USP. Determinado a que seu patrimônio, protegido desse pesadelo dos bibliófilos que é a dispersão, também o fosse quanto à deterioração, Mindlin estipulou um prédio especialmente projetado para acolhê-lo. Os requisitos incluíam temperatura climatizada; umidificação do ar; filtragem da luz e especialmente a do sol, danosa ao extremo ao papel; limpeza não agressiva frequente; prevenção de incêndio; aplicação de inseticidas para evitar as numerosas pragas que assolam esses materiais tão vulneráveis; e assim por diante.

A mudança, feita em uma semana apesar da magnitude da tarefa, foi sem percalços, o que releva do milagre. Perfeitamente planejada de antemão, com planilhas e mapas minuciosos, a curadora previu de onde cada obra sairia e onde se alojaria. Quando as caixas chegaram, já sabia onde e como esvaziá-las, com a catalogação intocada.

Mas não só a temperatura, o ar seco ou úmido, a luz, o fogo, os insetos e fungos ameaçam o papel. Os seres humanos também, e em escala ainda maior. A Gruta de Lascaux, na França, exemplar por seus maravilhosos painéis rupestres datando de 17 mil anos em perfeito estado, assim que foi aberta à visitação começou a deteriorar: o calor dos corpos dos curiosos e a vibração das vozes derretiam as pinturas. A tal ponto que foi necessário trasladar tudo para outra caverna nas proximidades, franquear a réplica à visitação e fechar Lascaux.

Aquisição e conservação

Pensando nesse e em outros casos, Mindlin, que foi dos primeiros no País a alertar para o uso do xerox, redutor do tempo de vida do original copiado, decidiu digitalizar seus tesouros. Já há três anos a digitalização prossegue, graças a um engenho miraculoso, que enquanto copia vai também virando a página, mediante um sistema de sopros. A máquina foi carinhosamente apelidada de Maria Bonita pelos técnicos que a operam. O início dos trabalhos foi bancado por uma verba de um milhão de reais da Fapesp.

O conjunto do feito agregou muitas instituições. Afora o valioso terreno, a própria USP entrou com 90 milhões de seu orçamento. Entre os financiadores se alinham BNDES (17 milhões), Petrobrás, Ministério da Cultura, Lampadia, CBMM, CSN; e, em escala menor, Suzano, Votorantim, Santander, Natura, CPFL, Cosan, Raizen…

O longo caminho percorrido desde que, em 1948, Mindlin se instalou na casa da rua Princesa Isabel, no Brooklin, em terreno de mil m², comportou várias etapas. Inicialmente, o modesto acervo foi acomodado num quarto em cima da garage, que passou a ser chamado de O Pavilhão, e numa grande estante dentro de casa, na sala de estar. O bibliófilo compulsivo – que lia todos os dias, e diariamente comprava livros não só antigos como novos – com o passar do tempo viu que precisava tomar providências. Cogitou em mudar de casa, mas estava acostumado àquela. Não havia para onde ampliar, nem poderia construir mais andares em região de gabarito controlado. A solução encontrada foi construir para baixo, procedendo-se à escavação de um vasto aposento em dois níveis, semienterrado no jardim, com entrada pelo Pavilhão. Ali finalmente a miríade de obras que se iam acumulando sem cessar, antes empilhadas atabalhoadamente, puderam ser organizadas, catalogadas conforme um caprichoso processo desenvolvido lá mesmo e colocadas nas novas estantes. A luz natural filtrava-se por uma série de claraboias, ao alto. Estava assim implantada em 1985 a chamada Biblioteca, enquanto se mantinha a estante da sala, onde residia a maioria das antiguidades mais valiosas.

Entre estas, dois exemplares da primeira edição de Os Lusíadas: num, a cabeça do pelicano está virada para a direita e no outro para a esquerda, o que já fez e ainda fará correr rios de tinta. Ou então a poesia de Petrarca, em edição do Quatrocentos. Ou incunábulos como a Crônica de Nuremberg, de 1493, e o Polifilo, de 1494. Ou ainda a edição NRF (1917-1927) de À la Recherche du Temps Perdu, de Proust, uma das predileções do bibliófilo, lado a lado com Guimarães Rosa. Deste último, a Brasiliana possui os originais de toda a obra tal como chegaram às máquinas impressoras, sob a forma de datiloscritos com emendas autografas.

Sua esposa Guita, cúmplice, jamais censurou os gastos e, ao contrário, partilhava do entusiasmo. Convencida de que ninguém sabia cuidar direito dessas joias, acabou enveredando pelo restrito campo da conservação de livros, tornando-se uma autoridade conhecida mundo afora, presidindo a associação internacional de restauradores e dando aulas a quem precisasse na oficina que instalou em casa.

O destino também ajudou, na pessoa da bibliotecária Cristina Antunes, que se apegou de tal maneira à Biblioteca que lá trabalhou durante 32 anos, e conhece pessoalmente cada peça. Ela é hoje a curadora da Brasiliana e fala de sua excepcional experiência emMemórias de Uma Guardadora de Livros. Coube a ela o comando da estratégia da mencionada mudança para a USP.

O bibliófilo mantinha-se a par do que de mais recente aparecia para aquisição mas também para conservação. Para tanto, circulava pelo planeta, não só frequentando as casas de leilão como também indo às bibliotecas e às universidades para tomar conhecimento do que possuíam e de como tratavam suas posses. E, como os livros insistiam em se multiplicar, ainda alugaria primeiro um e depois outro sobrado nas vizinhanças, para onde extravasaria o que ia chegando.

Novas doações

Resta assinalar que gestos desse tipo são incomuns no Brasil, não se sabe bem por quê. Mas, por exemplo, nos Estados Unidos, é por doações de mecenas que se mantêm tanto orquestras quanto museus, e que se constroem novas alas nas universidades ou nos hospitais, levando seus nomes. É por determinação do testamento de um casal que o Museu Metropolitan tem os suntuosos arranjos de flores de seu saguão diariamente renovados. O próprio Central Park, jardim fincado no coração de Nova York, foi uma oferenda dos mais destacados milionários da cidade, em meados do século 19.

Um dos prazeres de Mindlin era contar anedotas que cercavam suas grandes descobertas de raridades, suas “garimpagens”, como dizia. Boa parte delas receberia registro em seus escritos, especialmente em Reencontros no Tempo. Algumas eram histórias do arco-da-velha, de deixar boquiaberto o leigo. Não se furtava a relatar como passara quinau em outros colecionadores, conseguindo chegar primeiro a edições que eles também cobiçavam. Em sua pessoa, o amor dos livros e da cultura era entranhado, fazia parte de sua personalidade, do seu dia a dia. Ostentou essa convicção no ex-libris que escolheu, extraído de Des Livres, de Montaigne, que se estampa em todas as peças de seu acervo: “Je ne fays rien sans gayté”, ou seja: “Não faço nada sem alegria”.

Por isso, conforme sua concepção, uma biblioteca deveria ser um organismo vivaz e pulsante, e não algo que tem um ponto final e se fossiliza. De acordo com suas especificações, a Brasiliana deve crescer. Consequentemente, foram previstas prateleiras vazias aguardando novas doações, e a reserva técnica comporta espaço para 90 mil futuros livros. A esperança é de que seu bom exemplo frutifique.

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Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP