Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O cronista que pisava macio

Em 1946 Rubem Braga e Paulo Mendes Campos dividiam apartamento na Rua Júlio de Castilhos, Copacabana. Nos dias úteis invariavelmente iam ao Centro, onde se ganhava e se resolvia a vida, então. Certa vez, Rubem espantou-se: “Paulinho, você vai à cidade assim de chinelos?” Eram mocassins. Paulo Mendes Campos sempre pisou macio, leve, moderno, principalmente ao escrever crônica. Há quem diga que ele foi além do amigo (e grande influência) Rubem Braga:

– Paulinho foi não só um dos melhores como talvez o mais completo da fase de ouro do gênero, entre os anos 1950 e 1960, com tantos craques em campo: Rubem, Fernando Sabino, Antônio Maria, Nelson Rodrigues, Vinicius, Drummond – acredita o jornalista e também cronista Humberto Werneck. – Mais completo porque tocava mais instrumentos: do conto, da poesia, da reflexão, do humor. E se interessava por tudo, da alta filosofia ao futebol.

Quem quiser tirar a prova é só esperar até amanhã [segunda-feira, 25/3], quando a Companhia das Letras lança dois de um total de prováveis 15 títulos de sua obra reunida: O amor acaba e O mais estranho dos países. O editor Leandro Sarmatz também destaca a diversidade dele no tratamento de temas:

– Acrescentava o comentário social e político de natureza menos celebratória, especulava sobre a linguagem, tratava de assuntos pouco comuns como o tédio, a cultura dos bares, as noites escuras da alma. Quanto à forma, circulava livremente da crônica à missiva, ao perfil.

Personal essays

Um exemplo é o volume O amor acaba, que, assim como os demais desta reedição, foi organizado pelo jornalista Flávio Pinheiro, diretor geral do Instituto Moreira Salles, desde 2011 detentor do acervo do escritor. A começar pela crônica-título – cuja reprodução é febre nas redes sociais –, um passeio lírico pelo cotidiano que comprova outra façanha de PMC: suas crônicas, ao contrário do que ocorre geralmente com a produção de outros autores do gênero, não envelhecem. Ou envelhecem bem.

– Se morasse nos Estados Unidos ou na Inglaterra e escrevesse em inglês, Paulo seria considerado um autor de “personal essays”, tal a perenidade de seus textos – avalia Pinheiro. – Uma crônica admirável como “Por que bebemos tanto assim?” podia ser “Por que nos drogamos tanto assim?” ou “Por que comemos tanto assim?”, porque trata da ansiedade humana, que não tem época. Esta é uma das singularidades da sua obra. Mas há outras, como sua prosa estar embebida de poesia na maneira de construir a linguagem.

O mais estranho dos países recolhe as andanças do escritor Brasil afora, dissertando sobre virtudes e pecados da alma nacional. Minas Gerais, onde nasceu (em Belo Horizonte, no dia 28 de fevereiro de 1922), não poderia ficar de fora. Assim como o Rio, cidade que adotou em 1945, ficando íntimo dos bairros da Zona Sul – e de seus bares. De cabelos finos e ralos, e que pareciam “penteados no ventilador” (na observação do amigo Sérgio Porto), Paulinho, como todos o chamavam, pertenceu à geração do uísque. Quando abusava, tornava-se agressivo, como admitia, “um homem entornado”. Refletiu sobre sua dependência em textos confessionais:

– Eu me identifico com esse lado mais melancólico – diz o cronista Xico Sá. – Uma crônica como “Bom dia, ressaca”, é uma lição de humanidade. Ele dá conselhos certeiros para lidar com a ressaca: “Não se considere um crápula, um homem sem palavra, que isso é o que ela deseja”.

A exemplo de quando coordenou a edição de livros do autor para a Civilização Brasileira, entre 1999 e 2000, Flávio Pinheiro volta a optar pelas edições temáticas, possivelmente mantendo os mesmos títulos que abordaram futebol (“O gol é necessário”), humor (“Alhos & bugalhos”), autobiografia (“Cisne de feltro”). A diferença é que os textos agora aparecem com a data de publicação nos diversos veículos para os quais foram escritos (a revista “Manchete”, o maior lote, e os jornais “Diário Carioca”, “Correio da Manhã” e “Jornal do Brasil”):

O cego de Ipanema, O colunista do morro ou O anjo bêbado são títulos ótimos de esplêndidas coletâneas. Mas eram compilações que agrupavam o melhor publicado num espaço de dois, três anos. A seleção por temas, além de permitir o acréscimo de inéditos, desvenda outra faceta do escritor: a enorme erudição, sem dúvida a maior entre seus pares da crônica – explica Pinheiro.

PMC demorou a decidir-se pelo caminho das letras: estudou dois anos de Odontologia, um pouco de Veterinária, outro tanto de Direito; fracassou na tentativa de virar aviador; deu-se menos mal como jogador de basquete, apesar de medir apenas 1,59 metro. Seu primeiro livro saiu em 1951, A palavra escrita, de poemas. Amigo de Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, desde a adolescência militou na imprensa. Durante anos alimentou a ideia de um escritório de “fazeção de textos”, pois mandou de tudo na máquina de escrever até pouco antes de morrer, em 1991: publicidade, roteiros de cinema e televisão, traduções, reportagens. Tal faina deixou a poesia – para muitos, sua grande vocação – em segundo plano.

– De fato, a batalha da sobrevivência o obrigou a se dispersar – diz Werneck. – Sua poesia vazou fartamente para a crônica, mas sua produção em versos acabou sendo pequena. Há quem diga que se encolheu depois da bordoada que levou de Mário Faustino no “Jornal do Brasil”, em 1958, após a publicação de “O domingo azul do mar”. De quebra, teve a infelicidade de ser catalogado entre os poetas da chamada Geração de 1945, cuja produção, no geral, é frouxa, aguada. A dele, ao contrário, é uma poesia difícil, exigente.

55 cadernos

Os versos, que faltaram na reedição da Civilização, estão confirmados na da Companhia: os próprios (que têm admiradores insuspeitados, como os romancistas Ariano Suassuna e António Lobo Antunes) e os traduzidos (Paul Verlaine, T. S. Eliot, García Lorca, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, W. H. Auden, Philip Larkin, entre outras de suas predileções). Outra novidade será o relançamento, no segundo semestre deste ano, do Diário da Tarde, publicado em 1981 pela Massao Ohno, como no original. Nele, sob a rubrica “Artigo indefinido”, PMC reuniu textos de análise literária sobre Joseph Conrad, Walt Whitman, Virginia Woolf, Bernard Shaw. Mais que escritos de um crítico, são os de um leitor apaixonado.

Os arquivos guardados no IMS estão em fase de catalogação, daí podendo sair mais títulos: são 55 cadernos com anotações diversas e alguns poemas, desenhos, cartas, pastas com recortes, registros que mostram o seu espírito organizado, sobretudo no que diz respeito a leituras.

– Emerge deles um artista fino e especial, que somou ao talento um conhecimento profundo, fruto de estudo sistemático – define a pesquisadora Elvia Bezerra. – Ele poderia ser um chato, com tanta erudição, mas o que transparece é o humor e a alegria de viver.

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Alvaro Costa e Silva é jornalista