Descobri, por acaso, uma conexão entre a minha caixa de mensagens eletrônicas e o conceito de ??nya, em sânscrito. O zero da nossa matemática tem origem no conceito de vazio de ??nya. É assim que preciso manter minha caixa de novas mensagens. Num zero que não contribua para o momento, às 3 da madrugada, quando torço para que o sol anuncie o próximo dia de trabalho acumulado só dali a uma semana.
Outro dia me queixei com um amigo sobre o tempo consumido respondendo a e-mails. Ele ocupa uma posição importante no departamento jurídico de uma instituição educacional americana e me disse, tranquilo, que deixa inúmeras mensagens sem resposta. Inclusive “as de Fulano de Tal, que não para de me escrever e agora disse que vai se queixar com meus superiores e tomar providências”. “Fulano de Tal?”, perguntei, incrédula. “Você quer dizer O Fulano de Tal, autor deste, daquele e daquele outro romance?” “Ele mesmo”, meu amigo respondeu. “Já mandei uma resposta sobre a consulta inicial, ele está ganhando uma nota para doar seus arquivos depois da morte e meu tempo é curto.” Uau.
Meu amigo soava como John Wayne num vilarejo poeirento do Oeste americano. No faroeste da internet, ele faz as próprias leis. Mas não me conformei e sugeri que ele tratasse um escritor octogenário coberto de honrarias com uma deferência maior do que dispensaria a um caubói bebum no balcão do saloon.
Falta de educação
Cresci levando os pitos habituais dos adultos para corrigir meus modos e pertenço a uma geração cuja insolência desfrutou de mais impunidade do que a dos meus pais.
Nunca me esqueço de uma tarde em que a madre superiora parou de falar para a classe, apontou para mim e perguntou como eu me atrevia a começar a vestir o suéter cinza com o emblema da escola no momento em ela fazia um anúncio importante. Devia ter meus 9 anos e balbuciei “Estava com muito frio”, mortificada pela atenção das colegas. Sou capaz de reviver, enquanto escrevo, a sensação física de temor e vergonha.
A cena me volta à memória, vez ou outra, quando sou tratada com outro tipo de insolência menos atrelada a hierarquia ou geração, mas fruto da transformação na comunicação interpessoal. A vergonha que senti aos 9 anos hoje é reservada ao vexame de ter sua foto embaraçosa distribuída pelo Instagram.
Confesso sentir um certo prazer sádico quando um relações-públicas ou assessor de imprensa atende o telefone por engano. Por engano, sim, porque o telefone fixo existe apenas como secretária eletrônica e o celular existe para mandar SMS e e-mail, não para conversar. “Coloque seu pedido por escrito” é a resposta automática para a consulta mais simples. Se eu telefonar para um profissional de comunicação e perguntar “Que horas são?” ou “Está chovendo?”, garanto que vou ouvir a resposta “Mande um e-mail com a sua consulta”.
O que me leva de volta ao número zero. Zero é o número de mensagens que espero deixar sem resposta ao fim do dia, salvo doença ou distração – abri e fechei o e-mail sem marcar “novo”. Zero é o número de horas que disponho para desperdiçar nos dias abarrotados de prazos. E gostaria que fosse zero a tolerância para a falta de educação de pessoas cientes de que, ao se esconderem atrás do biombo digital, criam obstáculos ao trabalho dos outros.
Dois segundos
O novo jogo de poder é o silêncio permitido pela comunicação escrita. Qualquer burocrata pode manter inúmeras pessoas aprisionadas numa rede de espera. Se alguém o aborda de viva voz, ele ou ela não tem a opção de ignorar o interlocutor, mas se lhe escreveram um e-mail, quem sabe se recebeu mesmo? (claro que recebeu). Quem sabe se foi vítima de um sequestro relâmpago? (claro que não foi).
Sim, o acesso por e-mail é muito mais vasto e inconveniente do que o acesso por telefone. Mas demoro dez segundos para digitar as palavras “Peço desculpas, mas não posso tratar disso agora”, ou outra frase similar que tome conhecimento do outro e o liberte da espera. Mais dois segundos para apertar “enviar” e posso voltar a dormir às 3 da madrugada.
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Lúcia Guimarães é correspondente do Estado de S.Paulo, em Nova York