A divulgação de um texto em tom de desabafo por Luiz Carlos Azenha, jornalista dos mais conhecidos e editor do blog Viomundo,gerou comoção nas redes sociais no último final de semana. Nele, o ex-correspondente internacional da Globo, após referir-se a sua condição de arrimo de família e aos muitos compromissos financeiros daí derivados, insinua a possibilidade de fechar o blog devido aos altos gastos gerados em decorrência de um processo judicial movido por Ali Kamel, diretor-geral da Rede Globo. Só de custos advocatícios, atingiriam, até agora, R$30mil, aos quais viria a se somar igual quantia em decorrência de decisão judicial desfavorável, em primeira instância.
O texto de Azenha põe a nu, para um público mais amplo, uma situação que já aflige diversos blogueiros, como Rodrigo Vianna, Marco Aurélio Mello, Cloaca News, os irmãos Mário e Lino Bocchini (do blog satírico Falha de S.Paulo), entre outros: os efeitos da pressão econômica gerada por processos judiciais em uma atividade cujo status econômico majoritário oscila entre o amador e o semiprofissional, sendo praticamente inviável sem o aporte de patrocínios de monta, dificilmente obtiveis, no atual cenário, por sítios que primam pela análise política marcadamente pessoal e engajada (cabe lembrar que o Viomundo,por decisão de Azenha,não se vale de patrocínios estatais ou privados).
Desigualdades gritantes
Sem entrar no mérito da culpabilidade ou não dos blogueiros processados – e tendo claro que quem edita um blog deve estar atento aos limites constitucionais que regem a liberdade de expressão, notadamente os artigos 138 e 145 do Código Penal –, é forçoso constatar, em primeiro lugar, que lhes falta a retaguarda financeira e jurídica comumente assegurada ao profissional corporativo, não fosse o jornalismo uma atividade particularmente suscetível às disputas judiciais.
Em segundo lugar, chama a atenção a grave assimetria de forças que caracteriza um embate que opõe, de um lado, um blogueiro independente e, de outro, um alto executivo do maior grupo de mídia corporativa da América Latina, com tudo que isso implica em termos de poder de contratação de bancas advocatícias e de influência, direta ou indireta, sobre a própria Justiça, não só pela injustificável credibilidade que esta ainda dá à mídia corporativa no Brasil – o que não raro resulta na supremacia dos interesses desta em relação ao próprio direito universal de liberdade de expressão –, mas pelo fórum das decisões localizar-se no Rio de Janeiro, epicentro do poder das Organizações Globo.
Por fim, há de se levar em conta que a possibilidade de minar ou mesmo inviabilizar a atividade dos blogs não corporativos por meio do recurso a uma eventual litigância de má-fé, em que importariam menos os resultados das pendengas judiciais e mais os altos custos suscitados pela multiplicação destas, pode afigurar-se altamente interessante aos setores conservadores da política nacional, ainda mais em períodos eleitorais como os que se avizinham.
Blogosfera e poder
Porém não é só em termos eleitorais que as imbricações entre a política e a crise da blogosfera se fazem presentes. O pano de fundo ante o qual se desenrola o referido embate judicial de implicações econômicas diz respeito, na verdade, a mudanças profundas na relação entre a aliança federal petista ora no poder e a blogosfera política brasileira.
Esta se redimensionou e ganhou importância no tabuleiro político, nos últimos dez anos, como uma força comunicacional que se contrapunha a uma mídia corporativa que, em larga medida e como admitiu Judith Brito, sindicalista patronal e executiva do Grupo Folha, abriu mão dos princípios de imparcialidade do jornalismo e passou a agir cada vez mais como oposição. No bojo desse processo, parte considerável da blogosfera passou a exercer a dupla função de fiscal da mídia e caixa de ressonância a repercutir o tendenciosismo, os factoides e armações desta.
Nas últimas eleições presidenciais, descobriu e denunciou graves procedimentos da mídia nativa, como a ficha policial falsa da candidata Dilma Rousseff que a Folha de S.Paulo estampou na primeira página de uma edição dominical, as ligações da secretária da Receita Federal Lina Vieira, que acusava sem provas a candidata presidencial, com o governo FHC e o clã de Agripino Maia (DEM-RN), a tentativa do Jornal Nacional e de seu perito de sempre de transformar em pesado metal a bolinha de metal que atingiu a cabeça de José Serra, entre outros episódios que desonraram a mídia nativa e a fizeram parecer, aos olhos de muitos, pouco confiáveis.
Diversidade de opiniões
A partir desse momento, não obstante o caráter politicamente militante – ou talvez parcialmente devido justamente ao fato de, ao contrário do que ocorre na grande mídia, este ser explicitamente assumido –, a blogosfera política foi ganhando respeitabilidade, audiência, proliferando em novos blogs – e hoje, embora ainda esteja longe de oferecer em quantidade reportagens e matérias jornalísticas originais, vem superando, em termos de credibilidade e para um público cada vez maior e mais bem qualificado, capaz de prospectar e localizar os analistas mais capacitados, a mídia corporativa como fonte de análises políticas.
No entanto – e como decorrência desse processo –, sua relação com a aliança petista que, em grande parte, apoiara, sofreria grandes modificações com a ascensão de Dilma Rousseff ao poder. A nova mandatária não apenas recusou-se a qualquer gesto de reconhecimento para com o setor que havia feito intensa campanha por sua eleição como passou a priorizar, desde o início do mandato, as relações com os órgãos midiáticos cujos métodos difamatórios para com a então candidata petista a própria blogosfera denunciara.
Tal quadro agravou-se com a nomeação de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura e a adoção de uma política reacionária em relação a direitos autorais e novas tecnologias digitais, contrária à posição dos principais ativistas da causa no país, cuja mobilização pela eleição de Dilma – liderados por Marcelo Branco – fora intensa.
Divisão e reformulação
Daí por diante, e ao passo que medidas como a imposição da meta de zerar o déficit nominal, a truculência nas decisões relativas à construção da usina de Belo Monte, a retomada, sob o rótulo de “concessões”, do processo de privatização (tão criticado durante a campanha eleitoral), ou a recusa ao diálogo com sindicalistas e grevistas foram alijando setores da blogosfera, esta passou a apresentar divisões internas mais nítidas.
Uma porcentagem de seus membros optou pela oposição sistemática ao novo governo e, embora prevalecesse a maioria a favor, esta se dividiu entre os blogs de apoio irrestrito ao governo, outros de apoio crítico – entre os quais se insere a maior parte dos blogs ora sob judice – eainda outros que professam imparcialidade jornalística. Seja como for, o apoio entusiasmado do período de disputa eleitoral deu lugar, em larga medida, à produção de demandas políticas específicas e de conteúdo crítico em relação ao governo Dilma. A blogosfera se transformara em grilo falante, definiu alguém.
O cenário do conflito
É no contexto dessa dinâmica que se dá, lenta e paulatinamente, o confronto entre um governo que faz ouvidos moucos à necessidade premente de uma lei que regularize, em bases republicanas, a atividade midiática. Um governo cujo ministro das Comunicações, que no período eleitoral se promovera como um entusiasta da blogosfera e das redes sociais, agora defende um repasse milionário do Estado para empresas particulares de telecomunicação, as teles recordistas de queixas nos Procons, que, com a anuência do governo, vendem banda larga a preço de internet por satélite e velocidade de conexão discada. Um governo cuja secretaria de Comunicação continua a irrigar generosamente os cofres de uma mídia corporativa que não faz a mínima questão de sequer disfarçar sua ação política, enquanto mantém a torneira fechada para os blogs e demais órgãos de imprensa alternativos, os quais, quer queira, quer não, além de ocuparem uma fatia do mercado desenvolvem uma atividade comunicacional de grande relevância para o aperfeiçoamento democrático.
O duro tratamento dispensado pelo governo Dilma à blogosfera e à imprensa alternativa em geral pode parecer contraditório à primeira vista, mas a lógica por trás de tal ação amolda-se à perfeição ao seu projeto de expansão de hegemonia político-eleitoral à revelia das questões ideológicas, priorizando alianças o mais amplas possíveis (ainda que politicamente esdrúxulas ou eticamente insustentáveis), o desenvolvimentismo a qualquer custo e a manutenção prioritária dos índices econômicos.
Face a tal programa, parte considerável da blogosfera, com suas críticas pontuais, sua memória para com compromissos de campanha e, sobretudo, o pendor com que teima em insistir numa tomada de posição ideológica por parte do governo, transforma-se de aliado de primeira hora em incômodo porta-voz de escrúpulos que os atuais donos do poder querem superados.
Mecanismos defensivos
Seja como for, dada a inexistência de uma possibilidade autossustentação econômica da blogosfera no curto prazo, urge a necessidade de criar mecanismos que façam frente ao desafio de resistir a tais investidas. Na verdade, isso já havia se tornado, há tempos, uma questão prioritária para a blogosfera. Em um texto publicado em agosto de 2009 neste Observatório, por ocasião do fechamento do blog gaúcho A Nova Corja devido justamente aos custos – financeiros, físicos, psicológicos – gerados por processos judiciais, assinalei:
A despeito do temor de alguns blogueiros de que alguma forma de representação coletiva venha a comprometer sua independência, torna-se cada vez mais urgente, devido à profusão de processos judiciários contra blogs e ao intervalo cada vez menor entre eles, a montagem de uma rede de proteção jurídica a curto ou médio prazo. Ela poderia ser erguida, por exemplo, com a participação de advogados voluntários, ligados ou não a ONGs e universidades, mas cientes da importância do papel da blogosfera independente e dispostos a contribuir com seu tempo e saber jurídico da mesma forma generosa e gratuita que tantos blogueiros se dedicam às atividades de pesquisa e redação [ver “As tensas relações entre internet e política“].
Desde então, o tema foi objeto de muito debate no I Encontro Nacional de Blogueiros, realizado em 2010, e retornou amiúde nos encontros nacionais e regionais posteriores, mas sem gerar medidas efetivas que assegurassem sua resolução.
Agora, no bojo da intensa reação provocada pelo caso Viomundo, blogueiros e simpatizantes articulam uma reação conjunta. Uma reunião foi marcada para terça-feira (2/4), às 17h, no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé (Rua Rego Freitas, 454 – 1º andar – conj. 13) visando à busca de soluções para o caso Viomundo [ver aqui].
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Maurício Caleiro é jornalista e doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog