O périplo da tocha olímpica pelos continentes, mesmo dessa vez abreviado, não deixou de servir como prenúncio do imenso abacaxi que os chineses terão que descascar para impedir que a politização comprometa a grande festa das Olimpíadas preparada para Pequim, daqui a alguns meses. Os inusitados protestos que em maior ou menor escala cercaram o desfile do fogo olímpico, por conta da violenta repressão mantida pela China no Tibete, cujas imagens ganharam o mundo semanas atrás, além de deixar as autoridades chinesas em polvorosa, indicam que dificilmente novas manifestações de solidariedade ao povo tibetano deixarão de acontecer durante as competições. O que desde já abre a perspectiva de uma cobertura midiática extremamente problemática, na medida em que não se sabe até que ponto irá a liberalidade de um regime que, apesar dos avanços na economia, permanece sendo um dos mais autoritários e opressores do mundo.
Bem feito para eles, penso com meus botões, diante da constatação de que a China não está mais do que colhendo o que plantou, não só em relação à sangrenta ocupação do território tibetano, que remonta a quase três décadas, como ao extenso histórico de violação dos direitos humanos concernentes a um regime totalitário que contrasta com a abertura de sua economia. E os chineses que se dêem por satisfeitos se as manifestações ficarem por isso mesmo, já que a possibilidade de um boicote ao menos parcial não está inteiramente afastada, sem falar da ameaça constante de protestos mais radicais e mesmo de atentados.
Fruição e heroísmo postiço
Era mesmo de esperar que a China tivesse esse tipo de percalços pela frente, ao se propor a promover um evento dessa magnitude, cuja visibilidade é por demais tentadora tanto para os que lutam contra o despotismo como para ativistas de toda natureza. Não é preciso lembrar que o terrorismo não escolhe nomes nem lugar para dar o seu sinistro recado, e com as atenções do planeta convergindo para Pequim, é claro que todo cuidado será pouco para evitar que a grande festa do esporte vire palco de algo ainda mais sério.
Pessoalmente, acho que o COI pisou na bola ao escolher a China como sede de um evento destinado ao congraçamento dos povos e que, portanto, não deveria ser realizado em países em que o desrespeito aos direitos humanos ainda esteja presente. Mesmo nesses tempos de globalização, já que a abertura econômica chinesa não veio acompanhada de um liberalização das leis e costumes, quando muito o que há é uma certa flexibilização, em face do intercâmbio cada vez maior, mas sem incluir a liberdade de expressão. Essa ainda é uma transgressão grave, que a toda hora continua levando jornalistas, intelectuais e demais dissidentes a penas particularmente rigorosas. Aberração que não foi levado em conta e tampouco é cobrada com a devida ênfase pela comunidade internacional, até como condição sine qua non para a celebração dos Jogos.
Ciente de seu poder de barganha, o governo chinês continua sem emitir sinais de que possa deixar de lado a truculência como instrumento de persuasão e manutenção da ordem. Fato que não só os demais países têm engolido a seco, como tem sido negligenciado pela própria imprensa internacional, em função, como já disse, das boas relações com a segunda economia mais forte do planeta. E cujos interesses – ninguém se iluda – devem pautar a cobertura midiática, dentro do manjado figurino da sublimação e grandiloqüência. Haja panteão para tanta fruição e heroísmo postiço.
Congraçamento ou farsa
Obviamente, há que se torcer para que nada desvirtue ainda mais este que já foi o mais emblemático símbolo de exaltação da raça humana, mas que nos dias de hoje se apresenta muito mais como uma grande feira de negócios e oportunidades em que a antiga máxima do Barão de Coubertin – o importante é competir – vale apenas como lembrança de como os tempos mudaram. Não que o ideal olímpico tenha deixado de existir e que os feitos dos atletas não mereçam ser reverenciados, afinal, o mundo precisa de bons exemplos, de um refresco. Mas, sem dúvida, o ideal seria que essa mobilização toda servisse para, de alguma forma, aliviar o jugo de povos historicamente oprimidos, como os tibetanos e os próprios chineses, tarefa a qual a imprensa não pode abrir mão, não ignorando que uma festa tão grandiosa não pode se limitar ao aspecto esportivo.
Uma mensagem mais importante precisa ser dada – a de que a harmonia e o respeito entre os povos precisam prevalecer acima de tudo – e cabe à imprensa exercer seu papel com dignidade, deixando para o governo chinês a responsabilidade do clima que ficará registrado para a História. Se de efetivo congraçamento e fraternidade, conforme a pregação do próprio Dalai Lama, ou de farsa destinada a vender uma imagem que está longe de corresponder à faustosa realidade que o mundo verá em breve.
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Jornalista, Santos SP