Em dezembro de 1962, uma greve geral interrompeu a circulação dos principais jornais de Nova York. O movimento começou com os tipógrafos, ganhou a adesão de 17 mil trabalhadores (de jornalistas a ascensoristas) e se estendeu por 114 dias. A pausa forçada teve efeitos colaterais: foi nessa época, por exemplo, que os jovens repórteres Gay Talese e Tom Wolfe, livres das obrigações diárias, encontraram tempo para fazer longas e elaboradas reportagens que marcariam a era de ouro do jornalismo literário americano. Deve-se à greve, também, a criação daquela que se tornaria uma das mais respeitadas publicações literárias do mundo, a New York Review of Books.
Sem jornais, nem seus suplementos literários, criou-se um vácuo no debate sobre livros – e no espaço para publicidade das editoras. Um grupo de intelectuais de Nova York, sem dinheiro mas com vontade de sacudir a vida literária da cidade, aproveitou o momento para lançar uma nova revista, apostando que, por pura falta de opção, o mercado editorial em peso pagaria para anunciar até nas páginas de um veículo desconhecido.
Surgiu então a New York Review of Books, editada por Barbara Epstein (mulher de Jason Epstein, editor da poderosa Random House) e Robert B. Silvers. Ele vinha da revista Harper’s, onde publicara um manifesto da escritora Elizabeth Hardwick em defesa de uma crítica literária densa e ousada, na contramão de jornais onde só via “elogios insípidos e discordância frouxa, estilo mínimo e artigos leves, falta de envolvimento, paixão, caráter, excentricidade – a ausência, enfim, do próprio tom literário”. Para o número de estreia, Silvers decidiu pôr em prática essa filosofia e convocou uma seleção das letras anglófonas: W. H. Auden, Norman Mailer, Susan Sontag, Gore Vidal, Mary McCarthy e a própria Hardwick, entre outros. “Mandamos livros para cada um deles e dissemos: ‘Precisamos de uma resenha em três semanas, não temos dinheiro, mas queremos sua ajuda para mostrar como uma revista literária deve ser.’ Todo mundo aceitou”, lembra Silvers em entrevista por telefone, de Nova York, 50 anos depois daquela primeira edição, publicada em fevereiro de 1963.
Uma revista literária com DNA político
Aos 83 anos, Silvers continua à frente da NYRB, hoje um robusto veículo quinzenal com tiragem de mais de 130 mil exemplares, que ele passou a editar sozinho após a morte de Barbara, em 2006. Orgulha-se de dizer que as 1.042 edições lançadas até hoje honram o editorial de estreia (único da história da revista), que prometia um fórum sobre livros “interessantes e importantes”, sem espaço para obras triviais, “a não ser em certas ocasiões, para reduzir uma reputação temporariamente inflada ou apontar uma fraude”.
O nível dos colaboradores da primeira edição se manteve ao longo dos anos. As páginas da NYRB, que já foram ocupadas por Vladimir Nabokov, Elizabeth Bishop, Hannah Arendt e Edmund Wilson, hoje são frequentadas com regularidade por Joan Didion, J.M. Coetzee, John Banville e Charles Simic. Muitos livros canônicos das últimas décadas surgiram de textos publicados primeiro na revista, como Sobre a violência (1970), de Arendt, e A doença como metáfora (1978), de Sontag. Durante todo esse tempo, era Silvers quem colocava interrogações nas margens dos manuscritos. “Editar é fazer perguntas: ‘Pode explicar melhor?’, ‘Tem algo mais a dizer?’, ‘É isso ou aquilo?’. O segredo desse trabalho é explorar, caso a caso, as possibilidades de diálogo com os autores, pensando sempre em como ampliar e aprofundar a reflexão deles”, diz o editor.
Outro segredo da NYRB, conta Silvers, é a mescla de temas: da política às artes, da ciência ao comportamento. A primeira edição trazia críticas de obras recentes que se tornariam clássicas (a peça Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, e a novela Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira, de J.D. Salinger) e ensaios sobre política americana e economia russa. Em uma edição deste mês, uma radiografia do general americano David Petraeus, que renunciou à direção da CIA no fim de 2012 depois de um escândalo sexual, divide o índice com um texto sobre Batman. “Não nos limitamos a um tema porque somos uma revista de livros e ideias. Livros e ideias. Duas coisas que são vitais para o mundo.”
Nascido em 1929, em Nova York, Silvers passou boa parte dos anos 1950 em Paris, como redator do Exército americano, enquanto estudava na Sorbonne e na Sciences Po, berços da elite intelectual e política francesa. Foi integrante de primeira hora do conselho editorial da revista “Paris Review”, que também se tornaria uma instituição literária nas décadas seguintes. Em 50 anos de NYRB, assinou apenas quatro textos – todos, na verdade, abaixo-assinados em nome de causas como a libertação de prisioneiros políticos na Polônia e o fim do Comitê de Atividades Antiamericanas.
A política é parte da história da NYRB. A primeira década da revista, que o editor recorda como “uma onda de crises históricas”, começou com o assassinato de John Kennedy e terminou com a derrota americana no Vietnã (ambos temas de números especiais). Uma sequência de edições de 1989 traz uma entrevista com Yasser Arafat no auge da primeira Intifada palestina, uma reportagem sobre o apartheid na África do Sul e um ensaio do historiador Timothy Garton Ash sobre a “Revolução Alemã”, publicado semanas depois da queda do Muro de Berlim. Mesmo em um ano turbulento como aquele, porém, não se deixou de falar de literatura: a seção de cartas foi ocupada durante seis meses por uma querela sobre uma edição crítica de Ulysses, de James Joyce.
Da consciência humana ao pornô soft
Independentemente do tema, os textos da NYRB se distinguem pela extensão e profundidade quase sem par na imprensa mundial. Silvers cita como exemplo uma série de reportagens de Mark Danner, publicada em 2009, que revelou um relatório secreto da Cruz Vermelha sobre métodos de tortura aplicados pelos EUA em Guantánamo. A repercussão obrigou o governo americano a liberar documentos que comprovaram as acusações. “Quem passou o relatório para Danner sabia que poderíamos dar a ele a dimensão adequada”, diz Silvers, que desdenha da expressão long-form journalism, em voga na imprensa anglófona para classificar reportagens de fôlego. “Esse rótulo deve estar na moda porque publica-se muito textinho hoje em dia. Para nós, é apenas jornalismo.”
Silvers passa a maior parte do dia no escritório, em uma mesa repleta de pilhas de livros sempre prestes a desmoronar, trocando telefonemas e mensagens com colaboradores. Quando o prazo aperta, dorme na redação da NYRB (“em um quartinho charmoso que mandei fazer ao lado da minha sala”, diz).
Ao longo da entrevista, ele salta de um a outro tema abordado em edições recentes: as últimas teorias sobre a consciência humana, o polêmico projeto de digitalização de livros da Google, o pornô soft do best-seller Cinquenta tons de cinza. E fala com empolgação do site da revista (www.nybooks.com), que abriga seu arquivo completo e um blog alimentado por alguns de seus melhores colaboradores, como Robert Darnton, Colm Tóibín e Francine Prose. “Ao longo da História sempre houve métodos críticos para lidar com a informação, formas de interrogar criticamente a literatura, a política etc. O grande desafio hoje é encontrar um método crítico para lidar com esse oceano de informação que é a internet.”
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Guilherme Freitas, do Globo