Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regina Lima

 

“No último dia 13 de março, a ouvidoria recebeu a manifestação do leitor Matheus Ferreira, da cidade de São Paulo, discordando do termo consenso, que foi muito utilizado em notícias divulgadas pela Agência Brasil durante a cobertura da eleição do sucessor do papa Bento XVI [1]. Segundo nosso leitor, 'a palavra consenso não cabe no que se refere à eleição para a escolha do novo papa. Nas tomadas de decisão por consenso, TODOS os eleitores devem chegar a um comum acordo sobre o eleito. No caso da eleição do papa, o método para tomar a decisão é a eleição por maioria de dois terços e não por consenso, porque sabe-se que há divisões nas escolhas dos cardeais. E ainda que haja a maioria de dois terços isso não significa que houve consenso no nome escolhido. Só haveria consenso se 100% dos cardeais escolhessem o mesmo candidato. Por favor, sugiro que tomem conhecimento disso porque o método de tomada de decisão por consenso não foi compreendido adequadamente pela redação'.

A Diretoria de Jornalismo respondeu ao nosso leitor: 'Agradecemos os comentários do leitor a respeito das matérias que são da Agência Brasil e foram replicadas pelo portal Terra. Consideramos coerente o uso da palavra consenso com a definição do dicionário Houaiss, onde temos que consenso não significa unanimidade. É concordância ou uniformidade de opiniões, pensamentos, sentimentos, crenças etc., da maioria ou da totalidade dos membros de uma coletividade. Por isso, acreditamos que o uso da palavra consenso, nos dois textos em que ela aparece, esteja correto'.

Embora a resposta esteja correta, a Diretoria de Jornalismo poderia ter ido além da definição encontrada no dicionário. O mesmo termo, quando é usado no sentido da linguagem corriqueira ou no sentido mais técnico, pode ter significados diferentes. No jornalismo, a preferência tende a recair sobre o sentido corriqueiro, o que justificaria a utilização da palavra 'consenso' nessas matérias.

Mas nesse caso a escolha da palavra se justifica também pelo sentido técnico. A escolha do papa se dá por um processo eleitoral, no qual sem dúvida 'a busca de inspiração divina' exerce grande influência no esforço coletivo dos cardeais de identificar o melhor candidato, que pode vir a ser, ao final, o preferido de todos ao longo desse processo, os participantes votam, os votos são somados e há critérios que determinam quando o processo é concluído.

As eleições por consenso podem seguir a regra da unanimidade, como nosso leitor argumenta, mas essa não é a única regra. Muitos governos e outras organizações são adeptos da chamada democracia consensual ou consociacional e as práticas variam. Entre elas, algumas das regras decisórias mais comuns são: acordo unânime; consentimento unânime (a opção aprovada não é a primeira preferência de todos, mas é aceitável a todos); acordo unânime menos um ou dois votos; consentimento unânime menos um ou dois votos; e supermaiorias, em que patamares de 90%, 80%, 75%, dois terços e 60% são comuns. Outro exemplo, adotado no Brasil nas eleições dos deputados federais e estaduais e dos vereadores, é a proporcionalidade na distribuição das cadeiras legislativas.

O mais importante é que todas essas formas distinguem as eleições consensuais das majoritárias, em que o vencedor é quem recebe 50% mais um dos votos (ou menos, se houver mais de dois candidatos sem um segundo turno). Para os defensores das eleições consensuais, as regras seguidas por esses sistemas, ao contrário dos sistemas majoritários, favorecem uma representatividade mais ampla e o respeito pelos direitos das minorias, entre outras vantagens [2].  Além disso, as discussões que precedem a votação são marcadas pela maior intensidade de comunicação e negociação entre os participantes e são, por sua vez, governadas por regras que definem quais procedimentos são permitidos.

A eleição do papa se encaixa bem no modelo consensual e os dois antecessores imediatos do papa Francisco deram demonstrações de que o Vaticano está atento à dimensão política das eleições, no sentido dos efeitos que as regras podem ter nos resultados. Em outras matérias a cobertura feita pela ABr cita o Universi Dominici Gregis de 1996, que foi orientado pelo papa João Paulo II, determinando que o conclave deve ser realizado na Capela Sistina e que os cardeais devem morar na Casa de Santa Marta [3].  Mas não foi mencionado que nesse documento houve também uma mudança no percentual de votos exigido para decidir o segundo turno nas eleições papais se nenhum candidato emergisse vencedor nas primeiras 34 votações. No segundo turno, onde a disputa pode ser limitada aos dois candidatos com o maior número de votos na rodada anterior, o percentual, que era dois terços, passou a ser maioria absoluta (50% mais um).

Segundo alguns analistas, a mudança foi motivada pelo receio que o papa João Paulo II tinha de um potencial impasse entre blocos de eleitores, liberais versus conservadores, por exemplo, se a regra de dois terços fosse mantida. Para ajudá-lo a sair dessa enrascada, ele contava com a presença do economista estadunidense, Kenneth Arrow, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 1972, na Pontifícia Academia das Ciências Sociais, criado em 1994.  Arrow, conhecido pelo Paradoxo do Voto, que alerta que, respeitados certos critérios de equidade, a agregação das preferências dos eleitores pode levar a um resultado indefinido, pode ter recomendado a adoção de uma maioria simples como uma fórmula menos passível de um impasse.

Em 2007 o papa Bento XVI reverteu esta mudança, reestabelecendo a regra de dois terços. Desta vez, o receio foi o de uma disputa entre blocos desencorajar a procura de um candidato de consenso. Com a possibilidade de uma decisão majoritária no segundo turno, um bloco com uma maioria poderia preferir manter sua posição inalterada nas primeiras 34 votações (onde uma supermaioria de dois terços continuava a ser exigida) para forçar a eleição para o segundo turno. Com a regra de dois terços prevalecendo em todas as etapas do processo, aumenta a pressão para buscar um candidato de conciliação.

Assim, espera-se que a melhor compreensão do significado da palavraconsenso, não só no sentido da linguagem corriqueira, mas também no sentido mais técnico, ao se referir aos processos eleitorais, sirva ao leitor no acompanhamento da dinâmica desses processos, independentemente do foro no qual são realizados.

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-03-09/conclave-pode-ter-duracao-curta-e-consenso-indica-vaticano

http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-03-13/sem-consenso-para-eleicao-do-papa-cardeais-se-reunirao-para-mais-duas-votacoes-hoje

[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Consociativismo

[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-03-12/conclave-tem-historia-de-sete-seculos”