O boleiro malandro pergunta: “Quantos lados tem uma bola?” Você, ingenuamente, responde: “Bola é redonda, não tem lado.” O boleiro devolve, mais malandro ainda, com um sorriso de canto de boca e um ar de superioridade expresso pelo sutil franzir da testa: “Dois. O de dentro e o de fora”. Está aí um simples exemplo de que a realidade pode funcionar a partir de uma lógica bem menos provável.
Falando em jornalismo, imagine que alguém discorre o mantra das seis perguntas básicas do lead – o que, quem, quando, onde, como e por que – e pede um parecer. Você, achando até bobo o exercício, concorda sem entusiasmo. Mas é tomado de revés, no contrapé, com a seguinte colocação: “Na minha conta existe pelo menos mais uma.” “E qual seria?”, você pergunta meio encabulado, na condicional, para mostrar uma certa arrogância, típica de pessoa entendida em qualquer assunto. “O ‘para que’, que é diferente do ‘por que’. O primeiro significa meta, objetivo; o outro, causa, motivo”. Mais um exemplo de que a realidade pode funcionar a partir de uma lógica que desafia a probabilidade estabelecida.
E é assim, de modo quase improvável, que Alto Araguaia, município com 15,6 mil habitantes (censo IBGE 2010), no sudeste de Mato Grosso, divisa com Santa Rita do Araguaia – 6,9 mil – (GO), constitui-se numa imensa fonte de pautas. Ainda que se ouça com frequência nas salas de aula da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), corredores da instituição e rodinhas de imprensa local que a cidade oferece pouco em termos de notícia, a realidade é amplamente mais generosa que nossa noção de real.
Sites, blogs, coletivas
Bom, ao menos quando nosso espírito está afinado com alguns procedimentos considerados em desuso, como andar pelas ruas, manter sentidos afiados para perceber no comum algo potencialmente inovador, chocante, curioso a ponto de mobilizar nossas atenções. Tomar a iniciativa em vez de esperar a pauta do editor/professor, “fazer virar” aquilo que parece não render nem mesmo notinha de fim de coluna. Atitudes ligadas a uma postura de base, tradicionalmente jornalística, defendida por inúmeros teimosos, como Leandro Fortes, Rodrigo Vianna e Luiz Carlos Azenha.
Dessa maneira é que, ao passear, deslocar-se ao trabalho, dirigir-se ao consultório médico ou ao mercado em Alto Araguaia, se pode esbarrar com uma boa pauta. No mínimo, uma chamativa pré-pauta. Também, ao acompanhar o noticiário local, para se aprofundar ou destacar um aspecto novo quanto ao assunto divulgado. E ao dar ouvidos a cochichos e fofocas, que, muitas vezes procedentes, têm interesse público e geram um baita barulho. Daí pode advir uma boa lista de assuntos a serem cobertos.
Agindo pedagogicamente, funciona, e muito, fazer aulas na rua, para coleta de pré-pautas, realização de matérias, exercícios de estímulo à observação, audição, olfato, tato e paladar. Incentivar a composição de um repertório de sites, blogs, revistas, jornais, livros, filmes, músicas, programas de TV, de rádio e visitaçõesviagens caracterizado por diversos tipos/gêneros e, se possível, que também inclua opções contrastantes. Organizar coletivas com pessoas-chave na cidade (pelo que fazem, por uma situação em evidência, pelo cargo que ocupam), animar turmas a participarem de eventos que compõem a agenda do local.
Algumas pautas
Os resultados começam a aparecer gradativamente, na percepção universitária mais aguçada de o que é notícia para a cidade, e não apenas ao segmento estudantil. Na formulação de pautas com novos enfoques, inclusão de fontes de informação antes marginalizadas ou simplesmente esquecidas. Na menção voluntária em sala de aula, no corredor ou via internet (e-mail, Facebook) de algum fato relativo a uma cobertura, a um exercício, a uma leitura. Na elaboração de perguntas – aos entrevistados – que representem interesses coletivos e não se restrinjam à citação de experiências pessoais.
Nesse esforço de ensino-aprendizagem diversas pautas começam a pipocar pelos cantos de Alto Araguaia, algumas já feitas, outras em curso, mais uma remessa em estudo, como se vê a seguir.
>> Levantamento das condições de trabalho em Alto Araguaia, que há anos registra mortes e situações análogas ao serviço escravo em parques de produção de grandes empresas localizadas nos arredores do município e que são suas maiores fontes de arrecadação.
>> Consequências da drástica redução de publicações da única revistaria da cidade, que possuía melhor acervo que unidades de Rondonópolis (com cerca de 200 mil habitantes e a 200 km do local) e até que algumas de Cuiabá (capital, com 500 mil pessoas aproximadamente, a 400 km).
>> Relação da igreja católica de Alto Araguaia, que tem 62% da preferência dos religiosos (IBGE 2010), com o perfil do novo papa, Francisco, caracterizado pelos trabalhos em prol dos pobres.
>> Crescimento do setor de segurança privada no pequeno município, que diz ofertar serviço de ronda motorizada há cerca de 800 casas e pontos comerciais, e isto num lugar que sedia um batalhão da PM.
>> Andamento das obras do novo prédio da Câmara de Vereadores, paradas há tempos, cuja fachada já apresenta sinais de ferrugem.
>> Comportamento dos donos de mercados da cidade quanto aos preços dos produtos da cesta básica após decreto presidencial que isentou de impostos tais mercadorias.
>> Falta de plano diretor no município, que não é obrigado a tê-lo por possuir menos de 20 mil habilitantes – segundo o Estatuto das Cidades –, mas que foi promessa de campanha (referente à gestão anterior).
>> Precariedade do projeto “Internet popular”, ofertado gratuitamente pela prefeitura.
>> Quadro de abusos sexuais contra menores na cidade.
>> Levantamento das reclamações feitas pela população ao Procon Municipal e dificuldades de atuação do órgão, por falta de equipe de fiscalização.
>> Elenco de motivos dos constantes congestionamentos na BR-364, trecho que liga Alto Garças a Alto Araguaia (distância de 66 km), com ponto crítico no terminal rodoferroviário da América Latina Logística (ALL), na segunda cidade, gerando demora na travessia e reclamações de caminhoneiros, que ficam parados por dias.
Seguir em frente
De um lado, os apontamentos sobre o ensino do jornalismo que enfocam Alto Araguaia referem-se, na verdade, à práxis pedagógica voltada aos futuros trabalhadores da notícia de um modo geral. De ouro, cada município tem suas particularidades e os desafios podem se mostrar maiores quanto menor ele é. Isso se torna mais complexo se o lugar, apesar de receber dezenas de estudantes de fora, está longe de ser uma típica “cidade universitária”. Transforma-se em algo dramático quando se nota que o local possui apenas uma emissora de TV, uma de rádio, alguns sites noticiosos (número volátil), não tem revista nem jornal diário.
Nesse sentido, as saídas para o estágio, por exemplo, são investir na criação de espaços em órgãos públicos – com assessorias –, buscar oportunidades em municípios do derredor (de Mato Grosso e Goiás) e criar campos dentro da própria instituição, como a agência de notícias Focagen.
Entretanto, como jornalismo é um ofício profissional de caráter crítico e transformador, sua formação universitária deve reconhecer os problemas que o perpassam, admitir a agudeza de suas consequências e, ainda assim, esforçar-se para incorporá-los num movimento que os concebe enquanto elementos do processo de ensino-aprendizagem. Pegando carona em Ricardo Kotscho, pode-se dizer que não só o jornalismo, mas também o compromisso de educar estudantes de jornalismo, é uma “opção de vida”, quase um sacerdócio, algo que berra dentro de nós e não nos deixa em paz até que se torne palavra diária a nos orientar.
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Gibran Luis Lachowski é jornalista e professor do curso de Comunicação Social (habilitação Jornalismo) da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), campus de Alto Araguaia