Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Derrota da censura

A decisão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de aprovar em caráter conclusivo o projeto que autoriza a divulgação de imagens, escritos e informações biográficas de pessoas públicas pode ser um marco na história da liberdade de expressão do país.

Até agora, o Brasil vem caminhando no obscurantismo no tocante à publicação ou filmagem de biografias. O artigo 20 do Código Civil bate de frente com a Constituição, que veta a censura. Só informações avalizadas pelo biografado ou pela sua família podem ser mostradas. É o império da chapa branca, cravado numa sociedade que caminha para o pluralismo, a transparência, a troca de opiniões.

O brasileiro vê estupefato uma biografia de Roberto Carlos sendo recolhida e queimada; biografias de Guimarães Rosa a Raul Seixas sendo proibidas de circular; inúmeros filmes vetados por famílias que se julgam no direito de determinar o que pode ou não pode ser dito sobre qualquer pessoa. Exatamente o que os generais acreditavam poder fazer em relação a jornais, rádios e televisão.

Hoje, no Brasil, cineastas como Michael Moore não poderiam existir. Nem dezenas de documentaristas que têm realizado, nos EUA, na Europa, em Israel alguns dos trabalhos investigativos mais contundentes dos tempos modernos. Pela legislação em vigor, as informações contidas no horário eleitoral gratuito são mais úteis à sociedade do que todos os pesquisadores juntos.

Na maioria desses países, o biógrafo ou o documentarista assume a responsabilidade por crimes de calúnia. No Brasil é o contrário. Quem documenta é culpado a priori. E o único juiz é precisamente quem está sendo documentado. Numa produção audiovisual em franca expansão, como a brasileira, documentaristas e público se acostumaram ao culto do oficialismo, à obrigação de agradar, bajular, pensar com a cabeça alheia. Na ditadura, os jornais estampavam receitas de doces ou poemas de Camões para mostrar que estavam sendo censurados. No Brasil de hoje, o biógrafo é impedido de biografar e não pode fazer nada; o documentarista torna-se com frequência mero porta-voz de seu personagem. É uma situação degradante, e a sociedade acaba vendo isso como normal.

Boas perspectivas

O projeto aprovado na CCJ abre caminho para que a que a sociedade seja amplamente informada sobre seus homens públicos, seus políticos, seus artistas, não apenas através de denúncias, mas também de interpretações. O livro proibido sobre Roberto Carlos era laudatório; o mesmo acontecia com o documentário de Glauber Rocha, também proibido, sobre Di Cavalcanti.

A censura estabelecida pelo Código Civil se estende, portanto, a opções estéticas dos autores. Os biografados, e suas famílias, detêm não apenas o direito sobre o que é público, como a obra, mas o direito do estilo, que é de quem a interpreta.

A alteração votada abre um leque extraordinário ao desenvolvimento da produção cultural neste país. Mais livros serão escritos, mais filmes serão realizados, mais trajetórias políticas e artísticas serão debatidas. E a resignação à chapa branca será cada vez mais uma coisa perdida no passado.

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Nelson Hoineff é jornalista, produtor e diretor de televisão