Ainda há um longo mar a atravessar, é verdade, mas eis que demos, na última terça-feira (2 de abril) uma consistente braçada. Numa época em que a democracia representativa vai tão vilipendiada, é da ordem dos melhores ares que o Parlamento, a cumprir sua já quase esquecida função de legislar, compreenda a importância estratégica da peleja por meio da qual se pretende abolir a proibição à publicação de biografias não autorizadas no Brasil – algo típico de ex-democracias, como a da Venezuela, ou de democracias em decomposição, como a da Argentina.
Ao aprovar, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 393/11, do deputado federal Newton Lima (PT/SP), a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara alinha-se àqueles que identificam no artigo 20 do Código Civil, como ora redigido, uma inequívoca chancela à censura prévia.
Não se trata, pois, de questão meramente editorial. A rigor, é a liberdade que está em jogo. Sob o falso manto de se resguardar a imagem de pessoas públicas, é o direito fundamental à liberdade de expressão, mais do que a produção e a circulação de biografias, que se encontra sob tutela hoje.
Vivemos um tempo de retrocesso evidente, em que a falência do debate público não é o menor dos sinais. A cada vez que um editor – ou um escritor – precisa considerar primacialmente elementos que não aqueles inerentes ao seu trabalho, dá-se um passo atrás no terreno da livre circulação de ideias. Falo com base em meu ofício, que tende a se acanhar, já se acanha, achacado por sucessivos processos judiciais, inviabilizado pela indústria das imagens feridas e pelo advento, bem-sucedido, do “advogado de porta de livraria”. Não se avalia um original hoje apenas pela força de seu argumento, pela qualidade do texto e pelas possibilidades de mercado. É preciso lê-lo com olhar jurídico. Ou, por que não dizer?, com medo. É necessário antecipar possíveis problemas; discutir com o autor não a fraqueza literária de uma passagem cujo texto pode melhorar, mas a presumida vulnerabilidade de determinada referência, que precisará ser removida de modo a que se evite uma complicação nos tribunais.
Instituições maduras
Sob o oximoro moral consagrado por “biografia autorizada”, o que ora se edita no Brasil, com raras e heroicas – não raro suicidas – exceções, são mais ou menos disfarçadas hagiografias. Até quando?
Não está aqui em questão o fato de que o editor – bem como o autor – precisa ser responsável e ter cuidado com o que publica. Isto é óbvio. Este é um trabalho arriscado mesmo, que pressupõe coragem e apostas – e que pode e deve ser punido, como ocorre frequentemente nos Estados Unidos, quando erra, quando excede. No caso do livro, porém, a punição também tem seu pressuposto – e este não poderia ser mais simples: para ensejar uma reação, ainda que a mais negativa, ainda que a extrema, aquela que afinal o retirará das livrarias, um livro precisa existir; precisa ser editado e publicado; precisa ganhar o mundo, chegar ao mercado, ser lido e criticado; precisa ferir, se ataque houver; precisa denegrir Fulano e Sicrano, se infâmia trouxer. E então, aí sim, vivo, plenamente conhecido, sujeito ao escrutínio público, poderá ser motivo de uma ação judicial e das consequências de eventuais agravos legais.
Antes, não. Antes do jogo jogado, não.
Não queremos uma janela para sair desonrando pessoas públicas. Não é isso. Mas algo grave ocorre quando o editor se aproxima do covarde. Falamos de livro, ora! Da produção e da circulação de livros; de um processo – que chamaria de editorial, não fosse, bem antes, essencialmente humano – que precisa ser cumprido, para o bem de uma República cujas instituições se pretendem maduras. Vejamos o que nos diz o Senado.
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Carlos Andreazza é editor-executivo da Editora Record