Esperei meio século, mas aconteceu: a veneranda revista New Yorker publicou um texto sobre um assunto que eu já conhecia bem, e até pessoalmente. Foi semana passada [retrasada], em uma reportagem sobre um novo império de mídia, o da revista Vice, nascida em 1994 no Canadá e hoje sediada em Nova York. Visitei a Vice em 2008. Vi de perto essa máquina de fazer dinheiro.
É um conglomerado. Inclui a revista, voltada para homens de 18 a 34 anos, mais o site vice.com, mais diversos canais de vídeos dentro do site, mais uma agência própria de publicidade, mais escritórios em 35 países (inclusive Brasil), mais um programa na HBO de reportagens em lugares exóticos e perigosos.
A produção de conteúdo em vídeo é o forte do grupo, que fatura anualmente US$ 175 milhões (cerca de R$ 350 milhões). Não é um valor astronômico. Mas representa muito, se pensarmos que a Vice construiu sua identidade tratando de mutilações, perversões sexuais (com especial predileção pela zoofilia), consumo e tráfico de drogas, fotos de pessoas peladas, mortas, deformadas etc.
Novo clima
Mergulhar no lixo mantendo um verniz “cool”, eis o grande mérito da equipe comandada por Shane Smith, 42, bon-vivant, boca suja, cascateiro e trabalhador. Um Silvio Santos “indie”, ao mesmo tempo dono da empresa e sua principal estrela do vídeo.
Meu caminho até a sede da Vice começou quando vi um documentário produzido por eles, “Heavy Metal in Baghdad”, sobre o único grupo de metaleiros do Iraque. Em busca de detalhes, cheguei ao vbs.tv, um antigo site de vídeos ligado à Vice. Eram os primórdios da TV on-line.
Além dos metaleiros iraquianos, chamaram a atenção uma série sobre o movimento islâmico radical Hezbollah, no Líbano, e uma visita de um repórter à Jamaica, com muita maconha e passeios pelas quebradas de Kingston.
Quando fiz uma viagem de trabalho a Nova York, aproveitei. Escrevi para um e-mail genérico do site. Um executivo rapidamente respondeu. Marcou a visita já para o dia seguinte. Foi minha primeira e última vez em Williamsburg, a área mais hipster (se não sabe o que é isso, nem perca tempo pesquisando) do Brooklyn, ele próprio o bairro mais hipster da Via Láctea.
Durante algumas horas, os únicos três homens sem barba e camisa xadrez em um raio de 10 km éramos eu, o executivo da Vice e o colega que me acompanhou.
Na sede ampla de portas de vidro e ambiente de armazém modernizado (o de sempre: pé-direito alto, paredes brancas, muita luz natural), o dirigente da Vice explicou que em uma vida passada tinha sido vice-presidente da MTV. Cuidava das filiais estrangeiras.
Ele descreveu o clima do novo emprego: “Eu vim da MTV, onde a regra era quebrar todas as regras. Agora, eu trabalho para pessoas que não sabem nem que as regras existem”.
E deu um exemplo daquela manhã. Quando chegou ao escritório, perguntou pelo chefe, Shane Smith. A resposta: “Foi para o Líbano sem avisar ninguém”.
Nova potência
Em estilo, mas não em ideário, a Vice paga tributo ao inventor do chamado jornalismo gonzo, Hunter Thompson (1937-2005). Em reportagens delirantemente bem escritas para a “Rolling Stone”, ele misturava fato, ficção, consumo suicida de drogas e amplo desprezo pelo conceito de isenção.
Ninguém na Vice se compara em talento literário. Mas o espírito de Hunter está lá: jornalismo e loucura em iguais proporções. O que a publicação não herdou do velho –e a reportagem da “New Yorker” aponta isso– foi o gosto por esfregar o dedo na cara da “middle America”.
A Vice abraçou o “big business”. Corporações como Intel, HP e North Face têm portas abertas no site e na revista –e não só em patrocínio. Fazem ações conjuntas com a Vice. Chegam a bancar séries milionárias de “reportagens” em que o anunciante participa das decisões editoriais (algo impensável no jornalismo considerado de qualidade).
O sucesso on-line é tamanho que um dos principais investidores da Vice declarou que o programa na HBO só serve para atrair novos usuários para o site. O restante do planeta faz ao contrário: o produto principal está na TV, e a internet gira em torno dele.
A Vice se permite essa inversão porque virou potência. Desde a precária vbs.tv, passaram-se só cinco anos. Na velocidade da web, parece que foram 50.
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Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo