Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Estado de Direito e liberdade de imprensa

‘Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ [Art. 5º, LVII, Constituição Federal].

Poderíamos falar de vários princípios que surgem na constituição de um Estado de Direito, mas me restrinjo – neste momento – apenas ao do estado ou situação jurídica de inocência. Tal restrição se funda no meu desiderato de mostrar que há um grave problema em nossa sociedade: o exercício da liberdade de imprensa tem relativizado princípios constitucionais. Princípios que, se agredidos, colocam em xeque o próprio Estado de Direito ou, nas palavras de Luigi Ferrajoli, ‘assinalam a falência da função mesma da jurisdição penal e a ruptura dos valores políticos que a legitimam’.

Nos últimos dias a grande mídia vem mostrando o caso Isabella Nardoni, caso que apresenta a possibilidade do pai e sua esposa terem atirado a menina pela janela do apartamento do casal. Primeiro quero deixar claro que não tenho a intenção de entrar na celeuma de se o casal é ou não culpado; justamente ao contrário, por entender que esse é o papel do Poder Judiciário, pretendo dialogar acerca do desrespeito que, em nome da ‘liberdade de imprensa’, estamos cometendo contra um processo longo e doloroso na vida brasileira que foi a transição de um Estado ditatorial – onde o abuso era a regra – para um Estado de Direito – onde a regra deve ser o respeito aos direitos e garantias da pessoa humana.

Ilicitude e culpabilidade

Desde a Constituição de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, consolidou-se no Brasil um Estado Democrático de Direito. Isso não representa um fato banal, mas uma mudança substancial nas relações entre o Estado brasileiro e seus cidadãos. Onde aquele tem uma série de limites frente aos direitos destes. Um destes direitos é o da ‘presunção de inocência’. Coloco entre aspas por entender – e não sou o único – que o disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal representa mais que uma ‘presunção’; representa, na verdade uma condição para o cidadão, qual seja: a condição de inocente. Vale trazer as palavras de Eugênio Pacelli de Oliveira que, tratando desse princípio, nos apresenta duas regras impostas ao Poder Público no que se referem ao acusado:

‘… o princípio da inocência, ou estado ou situação jurídica de inocência, impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo a qual o réu, em nenhum momento do item persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e outra de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa a existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual presença de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse alegada’ [Oliveira, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, p. 31].

A serviço da sociedade

Vejam que há uma grande diferença entre ser presumidamente inocente e ser inocente. Quando se presume que alguém é inocente estamos relativizando sua condição e, por conseqüência, seus direitos podem ser relativizados; entretanto, se ele está sob a condição de inocente, seus direitos são inafastáveis, cumprindo ao acusador desconstituir sua situação. No curso do processo penal é que a acusação terá que provar a culpa do acusado. O réu não tem que provar que é inocente, pois essa é sua condição.

Nossa Constituição, em seu artigo 1º, inciso II, no capítulo dos princípios fundamentais, apresenta como sustentáculo do Estado de Direito a dignidade da pessoa humana. Desse princípio fundamental decorrem tantos outros que formam a essência de nossa estrutura político-social.

Uma imprensa livre é uma das decorrências importantes para a consolidação de uma sociedade democrática. Disso não abrimos mão, mas a questão que deve ser debatida é até que ponto esse pressuposto deve ser entendido. Deve a liberdade de imprensa ficar acima da dignidade da pessoa humana? Deve a liberdade de imprensa – que, no Brasil, é majoritariamente exercida por empresas privadas – ficar acima de um princípio constitucional? Em minha opinião, não, a liberdade de imprensa é muito importante, mas ela está a serviço da sociedade, deve servir aos objetivos desta e não pairar acima dela ficando alheia aos seus pressupostos.

Pacto social

De imediato, rechaço o argumento que possa ser usado – por aqueles que não querem debater o tema – de que eu esteja querendo ‘amordaçar’ a imprensa. Quero, sim, é que as garantias fundamentais sejam respeitadas em nosso país, com o escopo claro e sincero de consolidar uma sociedade justa e democrática.

O caso Isabella Nardoni é um exemplo de como a imprensa atua sem responsabilidade com o papel que ocupa em uma sociedade democrática. A imprensa apresentou uma série de reportagens que mostravam o pai e sua esposa como culpados. Pelo fato ser muito recente, é temerário que se apresente uma opinião sobre os fatos. Ainda mais se essa opinião repercute em todo o país.

Várias são os questionamentos: como foi?, o que aconteceu?, quais as circunstâncias? Enfim, tudo é possível, inclusive a culpa do pai e de sua esposa – veja que a imprensa apresenta esposa como ‘madrasta’, termo que tem uma conotação pejorativa em nossa sociedade – mas não podemos afastar que também existe a possibilidade de inocência de casal. Não sabemos o que de fato aconteceu nesse episódio; mas infelizmente uma coisa é certa: a sociedade já os condenou.

Ao agirmos assim, estamos contribuindo para o enfraquecimento de instituições – Executivo, Legislativo e Judiciário – que a humanidade levou séculos para criar e que sua consolidação é um processo longo e contraditório. É nossa forma de organização social e política, que tem como fundamento o pacto social. Nesse pacto, os cidadãos abrem mão de parte de sua liberdade em benefício geral e transferem o poder de punir para o Estado, que exerce esse poder através de seus órgãos: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

Caso da Escola Base

Quando relativizamos esses preceitos de nossa sociedade – em nome de algo que é meio, e não fim – estamos contribuindo para o enfraquecimento dos valores democráticos. Com um agravante: a democracia no Brasil ainda está engatinhando, portanto precisa ser defendida. Não podemos esquecer que faz pouco mais de duas décadas que saímos de um Estado de exceção.

Em um regime democrático, só há um meio de solucionar uma situação como esta – e não é a partir da opinião/decisão de redatores-chefes de empresas – privadas – jornalísticas, mas sim, por meio de um processo judicial com todas as garantias que o Estado de Direito pressupõe – juiz natural, ampla defesa e contraditório, condição de inocência, entre outros.

A única coisa certa em tudo isso é a condição que nossa Constituição – a Constituição cidadã, lembra? – dá ao casal, qual seja: a condição de inocente. Só uma sentença penal condenatória transitada em julgado pode mudar essa situação. Negar isso é negar o Estado Democrático de Direito, enfim, é defender o arbítrio.

Nem todos devem lembrar, mas tal fato – o pré-julgamento arbitrário da mídia – não é novidade. Em 1994 houve um caso similar. O caso da Escola Base, como ficou conhecido, teve tanta divulgação quanto esse. Nesse caso, os donos da escola, que eram marido e mulher, foram acusados de abusar sexualmente de crianças que estudavam em sua escola.

Reportagens tendenciosas

Não precisamos aprofundar análises sobre esse caso, pois já é sabido que os acusados eram inocentes. O que quero mostrar é a postura da imprensa e o resultado dessa postura na vida daquele casal. Só a título de exemplo vejam algumas das manchetes publicadas pelos jornais na época: ‘Professor ensinava a transar’, ‘Kombi era motel na escolinha do sexo’, ‘Perua escolar carregava crianças para orgia’. Some-se a isso as reportagens nos jornais de televisão, que mostravam entrevistas que falavam dos ‘detalhes’ dos abusos cometidos pelos donos da escola.

A população julgou – através das (des)informações da imprensa –, condenou e executou a sentença dos donos da escola – o prédio da escola foi depredado, os donos da escola foram execrados na sociedade, eles e seus filhos eram agredidos e humilhados na rua etc. Vale lembrar que tudo isso se deu antes do caso ser apreciado pelo Poder Judiciário.

Mas, segundo alguns, um fato como esse é um preço razoável a ser pago em nome da liberdade de imprensa, ou seria em nome do lucro gerado pela venda de jornais e da audiência dos telejornais?

A imprensa age de forma similar no caso Isabella Nardoni. Basta ver os fatos: depois de uma série de reportagens – que indicavam o pai e sua esposa como culpados – extremamente tendenciosas com entrevistas de vizinhas, mães das crianças que estudaram com a menina, informações de como a menina era maravilhosa, carinhosa, educada, mostrando vídeos da menina na escola, mostrando a página no orkut da sua mãe com fotos de como as duas eram felizes, as ameaças que o pai teria feito à menina em 2003 etc. Não há como ficar imune a tudo isso.

Máscara de democratas

O desenrolar dessa situação é nefasto para qualquer investigação que se pretenda séria e imparcial. Acontece o fato e logo em seguida a polícia pede a prisão preventiva do casal. Diga-se de passagem, depois de ouvir a mãe da criança, a qual, por óbvio, tem interesse em que se encontre o autor – ou os autores – do crime. Pior que pedir é conceder a prisão provisória. E é o que o juiz fez e, tentando dourar a pílula, determinou que a investigação devia seguir sob sigilo. No outro dia – pasmem –, o membro do Ministério Público marca uma entrevista coletiva com a imprensa para tratar do caso. Pergunto: o que essas posturas ajudam na solução do caso?

Há uma série de agressões aos direitos desse casal. Isso não é uma questão abstrata, pois suas vidas nunca mais serão as mesmas. Ninguém poderá devolver ou restituir a condição anterior do casal – lembremos do caso da Escola Base –, pois sua dignidade foi aviltada. Foram submetidos a sofrimento sem o devido processo.

Mesmo que analisemos sob a ótica contrária, veremos que essa situação é uma arbitrariedade. Se forem condenados depois do devido processo, já terão cumprido uma pena, portanto seus direitos já foram agredidos. Porque só deveriam ser punidos depois da condenação transitada em julgado, e não antes ou durante o processo. Mas com a exposição dada pela mídia, o casal já está sendo penalizado, pois o sofrimento que estão passando já é uma pena. Os que não concordam com isso devem defender o arbítrio e deixar a máscara de democratas, pois em nossa Constituição esses são os preceitos vigentes.

Falência da jurisdição penal

Falando sobre a relação do princípio do estado de inocência, Estado democrático de direito e a opção por um modelo garantista, Luigi Ferrajoli nos apresenta argumentos de suma importância para uma real apreensão do que representa esse princípio na atualidade:

‘Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo impunidade de algum culpado, ‘basta ao corpo social que os culpados sejam geralmente punidos’, escreveu Lauzé Di Peret, ‘pois é seu maior interesse que todos os inocentes sem exceção sejam protegidos’. É essa opção que Montesquieu fundou o nexo entre liberdade e segurança dos cidadãos: ‘A liberdade política consiste na segurança, ou ao menos na convicção que se tem da própria segurança’ e ‘essa segurança nunca é posta em perigo maior do que nas acusações públicas e privadas’, de modo que, ‘quando a inocência dos cidadãos não é garantida, tampouco o é a liberdade’. Disso decorre – se é verdade que os direitos do cidadão são ameaçados não só pelos delitos mas também pelas penas arbitrárias – que a presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica ‘segurança’ fornecida pelo Estado de Direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica ‘defesa’ destes contra o arbítrio punitivo. Por isso, o sinal inconfundível da perda da legitimidade política da jurisdição, como também de sua involução irracional e autoritária, é o temor que a justiça incute nos cidadãos. Toda vez que um imputado inocente tem razão de temer um juiz, quer dizer que isto está fora da lógica do Estado de Direito: o medo e mesmo só a desconfiança ou a não segurança do inocente assinalam a falência da função mesma da jurisdição penal e a ruptura dos valores políticos que a legitimam’ [Ferrajoli, Luigi, Direito e Razão, p 506].

Condição de inocência

As palavras de Ferrajoli devem ser entendidas como um alerta para toda a sociedade. Não podemos relativizar os pilares de nossa sociedade porque estaremos contribuindo para a deslegitimação de nossas instituições. Um prédio que não tenha seus pilares fortes e respeitados cairá.

Estamos invertendo a lógica do funcionamento do sistema democrático. O papel da mídia deve ser analisado pela sua relação com o Estado democrático de direito, e não apenas sob o ângulo de uma abstrata liberdade de imprensa – que dessa forma só serve à mídia –, mas sim, sob o prisma do Estado de direito – que, sem sombra de dúvidas, serve ao desenvolvimento dos seres humanos organizados em sociedade –, que pressupõe a existência e o respeito dos direitos e garantias fundamentais.

Não podemos temer esse debate com receio da acusação de sermos antidemocráticos ou coisa do gênero. Isso é uma arma daqueles que visam a fugir do debate. Que nos acusem, não importa, pois em nosso país vige o princípio da condição de inocência.

******

Acadêmico de Direito da Universidade Luterana do Brasil e servidor do Poder Judiciário/RS