Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Abaixo o mundo real

Um jantar de família: Enquanto uma parente mais velha, gorda e feiosa, conta, em sua voz monótona, como foi comprar ração para seus gatos, ouvimos o barulho infernal de um garoto tocando bateria no canto da sala. Ele está no canto da imaginação da bela adolescente que não desgruda da tela do smartphone. Em seguida, a voz da mulher é afogada pelo som de uma guerra de bolas de neve. Tudo se desenrola na tela da menina com um realismo que faz a ação invadir a sala de jantar.

Celebremos a autoabsorção, o desprezo pela refeição comunal e pelos feios.

Bem-vindos ao lar imaginado pelo Facebook. O filme descrito acima, Dinner (Jantar) é uma das peças de publicidade do Home, o software lançado por Mark Zuckerberg para que você nunca pare de viver no planeta dele, isto é, longe da sala de jantar da sua família. O mundo é um lugar deprimente e você só tem chances de ser feliz se for viver no Facebookistão. O que isto tem a ver com a missão oficial expressa da maior rede social do mundo de “Dar poder às pessoas para compartilhar e tornar o mundo mais aberto e conectado”? Nada, é claro.

Na felicidade prometida pelo comportamento antissocial encorajado pelo Facebook, conversar com quem está à sua frente é uma perda de tempo. Cool é desprezar o que não é cool. O ego não pode dispensar o afago da tela. Não há nada de romântico nesta forma de escapismo. Nada de soldados no Afeganistão sendo entretidos por uma banda de rock para voltar ao horror da guerra no dia seguinte. 

A rebelião da juventude, recomenda a rede antissocial, consiste em rejeitar seu espaço físico imediato, não importa se ele é mais rico, tátil e sensual. Tudo o que não se passa à sua volta é mais desejável e interessante. Nesta busca pelo ausente, ai de quem se insinuar com sua presença – daí a parente tagarela não ser apenas chata mas fisicamente repulsiva.

“Mais conectado”

A solidão, o estado humano que permite contemplação e reflexão introspectiva, fica oficialmente abolida, a não ser quando adormecemos. E quem garante que um apetrecho orwelliano como o Google Glass, não virá para cuidar da nossa interação inconsciente com o mundo do Facebook?

Três estudantes do câmpus da Universidade de Dartmouth, em Massachusetts, podem passar de 5 a 8 anos de prisão por ter mentido para o FBI e escondido pertences do acusado pelo atentado na maratona de Boston, Dzhokhar Tsarnaev. Eles correram para o quarto do colega quando viram seu rosto divulgado na TV como um dos dois suspeitos, junto com o irmão Tamerlan. Seu primeiro instinto foi esconder o laptop de Dzhokhar, além da mochila, que continha restos de fogos de artifício usados nas bombas. Sua desculpa? Não acreditavam que o colega fosse capaz de planejar um assassinato em massa, mas queriam que suas explorações digitais ficassem a salvo do governo. Não sei o que se passou pela cabeça dos rapazes, mas é difícil compreender como o cenário do atentado com 3 mortos, 250 feridos e inúmeros amputados, não figurou nas preocupações deles. Não consigo me convencer de que se tratou de um caso de lealdade cega movida por um laço profundo de amizade. Parece mais um caso de autorreferência, fruto do narcisismo e da falsa intimidade.

O poder que o Home oferece em sua campanha, não é o de viver “num mundo mais aberto e conectado”. É o de excluir quem não nos entretém, quem não se adapta às nossas expectativas imediatas. Em suma, expulsar, mesmo os que vivem conosco, da nossa home.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York