Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eu discrimino, nós discriminamos

Uma vista d’olhos, mesmo que superficial, sobre o noticiário nacional recente, leva o leitor a concluir, facilmente, que o preconceito é algo vivo, vibrante em nossa sociedade. Não se nega que tem havido avanços, mas o bicho é renitente, tem inúmeras cabeças e tem que ser combatido em muitas frentes.

Apenas na edição de 4 de maio de 2013 do jornal O Globo, há quatro matérias abordando o tema do preconceito. Na reportagem de Carolina Brígido, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, declara que a justiça é sempre mais rigorosa com os pobres e negros. Ela pune os “desvalidos” e “deixa impunes” os abastados. Além disso, na visão do ministro, políticos e poderosos, em geral, obtêm tratamento diferenciado da Justiça, devido ao fácil acesso que seus advogados têm às autoridades.

Em outra matéria, Maria Elisa Alves relata o atropelamento proposital de um jovem gay em São Gonçalo, interior do Rio de Janeiro. Neste caso, segundo testemunhas, o jovem foi atacado por ser homossexual. O motorista agressor passou três vezes em cima do jovem. Resultado: coluna quebrada em três lugares, costelas despedaçadas, bacia fraturada, pulmão perfurado. Não foi surpresa o homem morrer dias depois, no hospital. Na interpretação do delegado Alexandre Veloso, encarregado do caso, pelo fato de haverem decorrido vinte minutos entre a briga entre o jovem e seu agressor e o atropelamento, o crime foi registrado como homicídio doloso, e não culposo. Tecnicalidades à parte, um jovem de 22 anos foi friamente assassinado em via pública, à vista de amigos e transeuntes. Causa: intolerância sexual.

Muito angu

Em outra coluna, Guilherme Freitas trata da questão dos direitos civis no Brasil e no mundo, discorrendo sobre o debate político e social que o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem levantado na Argentina e no Brasil, enfocando, principalmente, o recente livro do militante gay e jornalista Bruno Bimbi. Este tipo de casamento, informa o jornalista, já foi legalizado em 14 estados brasileiros e também no Distrito Federal. No entanto, a vitória não está completa. Ao contrário, prevê-se luta renhida, pois as bancadas religiosas (católica e evangélica) preparam-se para uma verdadeira “guerra” no parlamento.

Quase correndo por fora, na contramão das notícias de violências contra homossexuais, Pedro Sprejer reporta que a Igreja Cristã Contemporânea abre suas portas, toda quarta-feira à noite, para acolher em uma casa, em Madureira, homens e mulheres gays que se sentem rejeitados pelo establishment religioso. A igreja tem seis sedes no estado do Rio, uma em Belo Horizonte e, em breve, uma em São Paulo.

Estas quatro notícias numa única edição de um único jornal são claras evidências de que, apesar dos inegáveis avanços, o preconceito está vivo e esperneando entre nós. A construção de uma sociedade plural e tolerante é algo demorado, exige tempo e investimentos de toda sorte. Não é de um dia para outro que o Brasil vai alcançar a almejada igualdade entre todos os seus cidadãos, não importa quão abrangente ou punitiva a legislação seja. Ainda temos que comer muito angu antes de chegar lá. Quanta dificuldade para ser vencida! Mas, por quê? Por quê?

Preconceito é preconceito

O homem é, por natureza, um ser contraditório. Se, por um lado, ele é o único capaz de sentir compaixão pelo outro, ele é também capaz das maiores atrocidades para com seus semelhantes e, especialmente, para com seus dessemelhantes. Em geral, todos os seres humanos são vítimas de preconceito, algum tipo claro ou disfarçado de discriminação. Segundo os estudiosos, os humanos menos sujeitos a discriminação seriam os homens brancos, de ascendência europeia, jovens, ricos, altos, bonitos, inteligentes, com educação superior, poliglotas, porte atlético, heterossexuais e bem-dotados. Qualquer outra pessoa fora dessas categorias vai sentir, em maior ou menor grau, algum tipo de discriminação. Portanto, mulheres, negros, asiáticos, baixinhos, pobres, gordos, idosos, monoglotas etc., preparem-se porque aí vem chumbo!

É muito interessante observar o comportamento das pessoas em relação ao preconceito, qualquer tipo de preconceito. Quem é discriminado sente na pele e no coração, como uma facada, a dor de ser discriminado. Quem discrimina, ao contrário, acha que está fazendo graça, que está exercendo seu direito, que não está fazendo nada errado, que não está causando qualquer sofrimento ao outro. Como todos nós somos sujeitos a algum tipo de preconceito, deveríamos ser solidários uns com os outros. Mas, na prática, não é isso que ocorre. Os negros, vítimas comuns de preconceito no Brasil, discriminam com todo o prazer, por exemplo, homossexuais e gordos. Estes, por sua vez, discriminam, com intensa alegria, baixinhos, pobres e mulheres. Resumindo, os discriminados de uma categoria lançam-se com sofreguidão sobre os discrimináveis de outras categorias, sem qualquer compaixão.

No entanto, preconceito é preconceito. Não importa o tipo. A dor que um negro sente ao se sentir discriminado por sua cor é semelhante à dor do cadeirante ou do velhinho que é humilhado por ser o que é.

Sinal de cidadania

Uma das consequências mais funestas da discriminação é o isolamento, o ressentimento, a mágoa que o discriminado sente. A dor da exclusão. Estes sentimentos, se exacerbados, podem evoluir negativamente e desembocar em atitudes drásticas, extremas, desesperadas. Muitas formas de violência urbana nas nossas cidades certamente têm sua origem nos discriminados passivos, reprimidos e impiedosamente maltratados pela sociedade.

Ao refletirmos sobre tudo isso, devemos nos conscientizar de que nós humanos somos diversos em todos os sentidos. Imagine uma característica qualquer e você encontrará diversidade nela. É um fato da vida. E isso é importante para a humanidade. Foi por isso que chegamos onde chegamos, pela nossa diversidade. E essa própria diversidade surgiu como adaptações necessárias à nossa vida nesse planeta que, por sua vez, é extremamente diverso, em todos os sentidos. Aprender a aceitar e a conviver com toda a diversidade existente na Terra é sinal de civilidade, maturidade e cidadania.

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Tarciso Filgueiras é pesquisador e professor