No 21º andar de um prédio na esquina da Rua 47 com a Segunda Avenida, em Manhattan, há uma biblioteca formada sobretudo por títulos de política e história americanas que, há 16 anos, repousa à espera de um destino no Brasil. Desde a morte do jornalista e escritor Paulo Francis, em 4 de fevereiro de 1997, quase 5.000 livros seguem praticamente intocados em seu escritório. A viúva, a jornalista Sonia Nolasco ainda mora no apartamento, mas se limitou a guardar alguns de seus próprios livros nas estantes e retirou outros, que distribuiu entre amigos dele.
Após uma tentativa fracassada, Sonia agora quer selar o envio do material para o país. Seu desejo, disse à Folha, é que o destinatário seja o Instituto Moreira Salles (IMS), instituição privada que se especializou na compra e na conservação de acervos literários e é o destino dos sonhos de nove entre dez famílias de escritores brasileiros. Embora se fale em “doações”, as negociações para cuidar de tais papeladas quase sempre envolvem somas consideráveis.
Francis viveu mais da metade de seus 66 anos em Nova York – sua segunda cidade, depois do Rio, onde nasceu em 1930. Na primeira vez, nos anos 1950, ainda era o adolescente Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn, que acompanhava o pai, funcionário da Esso em Nova York. Na segunda, em 1971, já era Paulo Francis, o editor da Senhor, do Pasquim e da área cultural do Correio da Manhã, entre outros feitos. É a essa época que remonta a formação da biblioteca da Rua 47.
Doação
Houve uma tentativa de levar os livros para o Brasil logo após a sua morte, por infarto fulminante. O acervo seria doado ao empresário Ronald Levinsohn, amigo de Francis e então dono da UniverCidade (Centro Universitário da Cidade), no Rio. Sonia e o próprio Francis prometeram a Levinsohn a doação da biblioteca, sobretudo dos livros políticos.
Algo como uma antiga dívida de gratidão unia o jornalista ao empresário. Em 1983, Levinsohn esteve envolvido num escândalo financeiro conhecido como Delfin, no qual a então maior caderneta de poupança do país sofreu intervenção do Banco Central. À época, Francis o defendeu publicamente – somente 23 anos depois a Justiça inocentaria o empresário.
Com a morte de Francis, porém, a relação entre Sonia e Levinsohn desandou. A doação melou.
“Imagino que deve ter muita coisa legal na biblioteca”, comentou o empresário, em dezembro passado. Ele estava em sua casa carioca, no Cosme Velho, recém-chegado de Nova York, onde tem um suntuoso apartamento em Park Avenue. “Nova York nunca mais foi a mesma sem o Francis”, disse, ao ser informado pelo repórter sobre o teor da conversa. Levinsohn lamentou não ter conseguido levar a biblioteca para o Brasil. Diz, contudo, que “tem amigos que podem alocar os livros em algum lugar, talvez a PUC-Rio”.
Por enquanto, a cidade de Francis só recebeu, na década de 1990, sua coleção de 379 laser discs, espécie de antecessor do DVD que não vingou. O acervo está disponível para consultas na sede carioca do IMS e inclui filmes, concertos, óperas, balés e musicais. Quanto à biblioteca, o instituto informou à Folha que a viúva do jornalista ainda não os procurou oficialmente. E que, antes de tomar qualquer decisão, será necessário avaliar o acervo.
A biblioteca de Francis revela a peculiar educação sentimental de um comentarista de TV que nasceu e se criou sob a lógica da Guerra Fria. Expõe também laços afetivos e certas engrenagens da mente de um dos mais polêmicos jornalistas brasileiros do século 20.
O escritório permanece tal e qual estava quando ele morreu: ainda estão lá os quadros e desenhos de amigos da turma do Pasquim, como Millôr Fernandes. Ainda está lá, na parede em frente à escrivaninha, a foto de um ídolo de juventude, o revolucionário russo Leon Trotsky. Da janela à sua direita, Francis via a fileira de arranha-céus ao longo da Segunda Avenida, em direção ao sul.
As estantes são uma amostra da pauta de seu “Diário da Corte”, a influente coluna que ele publicava na Folha entre 1975 e 1990: teatro e ópera, romances, poesia, policiais e, sobretudo, ensaios, jornalismo e livros de história e política do século 20. São inúmeras as obras de autores que transitavam entre o ensaísmo e a grande reportagem, e que praticavam uma crítica de cultura tão erudita quanto ferina. Sem Francis, provavelmente seriam menos conhecidos no Brasil nomes como Gore Vidal, Joseph Mitchell e Tom Wolfe. As estantes ainda abrigam os clássicos que ele adorava citar, como Bernard Shaw, Edmund Wilson, Thomas Mann, Aldous Huxley e James Joyce.
Vai se decepcionar quem esperar encontrar ali um manancial para pesquisar a cultura brasileira dos anos 1950 e 60, quando Francis fazia e acontecia no Rio. As poucas obras em português são de amigos (Millôr, sempre ele, Ivan Lessa, Roberto Campos), um ou outro clássico da literatura brasileira e alguma coisa sobre os tempos de militante político, perseguido pela ditadura militar (1964-85).
Nenhum volume ali vem de sua fase carioca. “Suspeito que ele deixou no Rio uma grande coleção de literatura e teatro, porque a mudança para Nova York foi muito repentina”, especula Ruy Castro, amigo de Francis e pertencente à primeira nova geração de jornalistas formada sob influência direta de Francis. Sonia Nolasco, que foi casada com Francis por mais de duas décadas, diz que nunca teve notícias dos livros daquela época.
A grande quantidade de volumes denuncia o fraco que Francis tinha por obras sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e sobre todos os presidentes americanos entre os anos 1930 e 90, em especial Roosevelt, Kennedy, Lyndon Johnson, Nixon, Carter e Reagan.
Em 1986, ele afirmou, em sua coluna na Folha, que lia no mínimo três livros por semana. “Leio muito rápido. Mas por prazer, serei franco, leio exclusivamente thrillers.” O jornalista Lucas Mendes, seu amigo em Nova York e companheiro de bancada no Manhattan Connection, hoje da GloboNews, lembra que Francis tinha cada vez menos interesse por autores novos. “Ele relia os favoritos e poucas publicações, a maioria inglesas e conservadoras”, conta.
Em O Afeto que se Encerra (Civilização Brasileira, 1980), de memórias, um de seus livros mais bem-sucedidos, Francis conta: “Toda minha formação é europeia, de Dostoiévski a Stendhal, a Sartre (romancista). Ivan [Lessa] me levou aos americanos, me esculachando o conservadorismo, de Hemingway a Fitzgerald, a Norman Mailer, a Capote, a Faulkner etc.”.
Além da infância, suas memórias narram sua carreira jornalística, sua tentativa de viver de literatura e a convivência com os amigos. Ivan Lessa é apresentado como “irmão mais novo”, “como Jorge Zahar, Ênio Silveira, Millôr Fernandes e Cláudio Abramo são os mais velhos”.
Assim como Ruy Castro, o jornalista e escritor carioca Sérgio Augusto conheceu Francis nos anos 1960: foi seu colega na redação do Pasquim. Na biblioteca do amigo em Nova York, conta ele, “encontrei quase os mesmos autores que tinha e guardo na minha. Apesar da diferença de idade [12 anos], pertencíamos praticamente à mesma geração”.
Em 1998, estimulado por Sonia Nolasco, Sérgio Augusto levou, como recorda, “uma meia dúzia de livros” da biblioteca da Rua 47. “Descobri um bocado de ensaístas e historiadores por intermédio do Francis”, completa. Entre eles estão Gabriel Kolko, Eric Bentley e Geoffrey Barraclough, este último, segundo Sérgio Augusto, publicado no Brasil por Jorge Zahar por indicação de Paulo Francis.
Francis não era um deles, mas sua biblioteca faria a festa de ratos de sebo com suas coleções de revistas dos anos 1970, como os exemplares da Partisan Review, mitológica publicação de esquerda sobre política e literatura que circulou entre 1934 e 2003.
“Ele não era um Mindlin”, define Ruy Castro, citando o maior bibliófilo brasileiro, cuja biblioteca, doada à USP, acaba de ser aberta à pesquisa. “Francis não tinha um comportamento reverente ao livro. A relação dele com o livro era muito pragmática. Ele pegava, lia, marcava o que queria, podia pular páginas e capítulos. Ele deixava o livro para trás sem problema.”
Ruy conta que, quando o visitava em Nova York, o programa de sempre era flanar pelas livrarias, principalmente a tradicional Brentano's, fundada em 1853 e que fechou as portas em 2011.
Romance
Em Radical Chique e o Novo Jornalismo, Tom Wolfe narra a obsessão de sua geração de jornalistas com “o Romance”, que ele escreve assim, com ironia maiúscula: “O Romance parecia um dos últimos desses grandes golpes de sorte, como encontrar ouro ou achar petróleo, com que um americano podia, do dia para a noite, sem relance, transformar inteiramente seu destino.”
“Não havia lugar para jornalistas”, recorda Wolfe mais adiante, ao descrever um ponto de encontro de escritores em Nova York. “A menos que ali estivesse no papel de futuro romancista ou simples cortesão dos grandes.”
De certa forma, à sua maneira, a geração de Francis também viveu essa fantasia com “o Romance”. Tendo se notabilizado pela opinião desabrida e idiossincrática, ele morreu sem se consagrar na ficção, como almejava. Seus romances – a trilogia formada por Cabeça de Papel (1977), Cabeça de Negro (1979) e o póstumo Carne Viva (2008) – nunca receberam a mesma atenção de sua produção jornalística.
Os dois primeiros têm como pano de fundo a ditadura brasileira, a revolução e a oligarquia carioca. Os dois protagonistas, que dialogam freneticamente sobre esses temas, são seus alter egos. Em O Afeto que se Encerra, Francis diz que Cabeça de Papel foi a melhor coisa que já escreveu e relembra o conselho de amigos que leram o livro antes da publicação, como Ênio Silveira e Ivan Lessa, e previram o fracasso.
Ainda assim, ele se abalou com a má repercussão. Teve depressão e, como contou em suas memórias, chegou a pensar em suicídio. A frustração ainda reverbera em Sonia Nolasco, que rechaça a ideia de publicar mais inéditos: “Só tive aborrecimento com o que saiu depois que ele morreu. Gente dizendo que ele tinha virado de direita ou que ele não sabia escrever ficção. Porque não diziam isso na frente dele, quando estava vivo?”
O tempo, porém, tem mostrado que o juízo negativo não se deve a questões pessoais ou à costumeira ira de seus contemporâneos com suas controvertidas opiniões.
“Como jornalista ele é muito mais brilhante do que como romancista, e ele mesmo reconhecia isso”, diz Cristiane Costa, que no livro Pena de Aluguel (Companhia das Letras) destrinchou a vida anfíbia de escritores-jornalistas no Brasil entre 1904 e 2004. Entre eles, é claro, está Paulo Francis.
“A literatura do Francis tinha problemas estruturais graves, qualquer leitor, mesmo os mais apaixonados, percebe”, diz Cristiane. “As tramas são confusas, a arquitetura narrativa é desleixada. Talvez Francis não tivesse paciência para a carpintaria literária.”
Ruy Castro conta que ele realmente ficava chateado quando alguém falava mal de sua obra ficcional. “Eu e ele, assim como o nosso mestre maior, Bernard Shaw, não somos para a ficção”, diz Ruy, que já se aventurou em dois romances. “A literatura dele era de ideias, não de ação, o que é sempre mais difícil.” Já Sérgio Augusto o compara a Gore Vidal e Susan Sontag, estrelas da crítica cultural americana: “Bem melhores no ensaio do que na ficção”.
O acervo da Rua 47 inclui, além da biblioteca, os manuscritos inéditos de dois projetos: um livro inacabado, O Homem que Inventou o Brasil, ficção em inglês sobre Getúlio Vargas e o Brasil dos anos 1950, e uma peça de teatro, uma das paixões do jornalista que, jovem, chegou a atuar. Pelo desejo da viúva, o destino desse material também deverá ser o Rio de Janeiro: a Biblioteca Nacional.
A ideia do livro sobre Getúlio, que seria destinado ao mercado americano, lhe foi sugerida pelo amigo Paulo Bertazzi. Muitos amigos dele não conheciam o projeto. Na década de 1990, um esperançoso Francis enviou trechos a editores americanos. Não houve resposta. E o livro ficou sem ponto final.
Certa vez, numa coluna, ele comentou sua produção literária: “Dei meu recado. Talvez, com o tempo, receba a resposta. É a consolação do escritor que se sente rejeitado”.
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Lucas Ferraz é repórter da Folha de S.Paulo