‘(…) A última frase do subchefe dava-lhe voltas na cabeça. O segredo da abelha não existe, mas nós conhecemo-lo, não existe, mas conhecemo-lo, conhecemo-lo, conhecemo-lo. Vira cair uma máscara e percebera que por trás dela estava outra exactamente igual, compreendia que as máscaras seguintes seriam fatalmente idênticas às que tivessem caído, é verdade que o segredo da abelha não existe, mas eles conhecem-no (…)’ (A Caverna, José Saramago)
É possível interagir com o que já vem pronto, acabado, digerido ? A onda televisiva dos reality shows é a frutificação do processo alienante plantado no início da televisão. O telespectador senta-se em frente à TV para não existir durante o tempo que dura a atração. Durante aquele período ele aliena o seu direito – e dever – de pensar. Antagonizando, então, Descartes e seu cogito ergo sum, a ‘inteligentsia’ finalmente conseguiu criar o ‘não penso, logo, inexisto’.
A construção ficcional das novelas
A mass media empacotou a realidade e deu-lhe a forma de atração. O embotamento induzido pelo ‘excesso de nada’ leva a um estado de disfunção narcotizante, constantemente alimentado pelo apelo ao individualismo contemporâneo que não consegue mais refletir, dentre outros aspectos, sobre a violência, as questões políticas e os problemas sociais. São momentos de vida não-comunicante, insocial, corroborados pelo hábito dos ipódis e emepês, pela falta absoluta de conversa e pelo ensimesmamento improdutivo. Ponto para quem apostou, na década de 40, no Deus-ferramenta (um deus de resultados) chamado televisão. Levaram-se anos para criar o consumidor ideal e, agora, finalmente, voilà: ele não reclama, não sugere, não avalia, não critica e, ainda por cima, carrega a ilusão de interferir. É ou não é o Olimpo da alienação?
Como exemplo evidente, tomemos o mais famoso reality show: o Big Brother, impressionante atração em todos os países que o exibem. No Brasil, pelas mãos da experiente TV Globo, o programa recebeu a herança da tarimbada construção ficcional utilizada nas telenovelas. Assim, percebe-se no BBB a existência de protagonistas, antagonistas e coadjuvantes, organizados em núcleos que interagem e se afunilam até o final. Eles desenvolvem uma narrativa que, a exemplo de qualquer outra, carrega seus conflitos, ápices e desenlaces. Personagens são coordenados por um narrador-onisciente que representa (indutivamente) o tal alienado do outro lado da tela. Sem deixar de mencionar a competentíssima sintaxe visual, representada pelos enquadramentos, marcações, cenografia etc.
Um demiurgo platônico
Afloram as características do livro 1984, de George Orwell, como, por exemplo, as impessoas (os eliminados), a novilíngua (linguagem simplificada e simplificadora que limita o pensamento crítico por inanição mental), o duplipensar e a eterna recriação da história de acordo com as circunstâncias propostas, entre outras similaridades. No que diz respeito ao Big Brother (personagem) da literatura, este, por lógica, deveria ser interpretado pelo telespectador, o qual, entretanto, não exerce a função. Tem apenas a ilusão de exercê-la através da proposta interativa. Ora, a interação é fato impensável para o programa, exatamente por ser veiculado na televisão comercial, a quem não interessa que o telespectador ‘elimine’, eventualmente, personagens importantes para a manutenção do interesse na trama. Caso a TV comercial agisse de outra forma, acolhendo a interatividade em detrimento da manutenção da audiência que estimula a negociação das cotas de patrocínio, ela seria a ‘TV burra’ e, definitivamente, sabemos que não o é.
A TV segue construindo um produto desejado e, ao mesmo tempo, alimenta-se da demanda que o mesmo provoca; por outro lado, o telespectador também vive essa experiência baudrillardiana. Deseja viver (ou ter a impressão da vivência) aquilo que pensa que o reflete, deseja sentir-se partícipe. Vive imantado a uma ilusão extra-corpórea de existência projetada na tela da TV. Demiurgo platônico que mitifica não as individualidades, mas o projeto do conjunto delas, construído como uma fábula referencial que gera o efeito de real, com credibilidade e verossimilhança.
Daqui, de meu apartamento, eu não vejo as sombras, porém sinto o cheiro.
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Funcionário público municipal, Belo Horizonte, MG