Lançado no dia 14 de maio, na Associação Brasileira da Imprensa, o livro intitulado O caso Última Horae o cerco da imprensa ao governo Vargas, com prefácio da historiadora Maria Aparecida de Aquino e a orelha escrita pelo jornalista Alberto Dines.
O livro discute as concepções deopinião pública divulgadas pelos representantes da imprensa do Rio de Janeiro durante o governo Vargas. Toma como ponto de partida para análise a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Última Hora, episódio de grande repercussão no campo jornalístico, dado o envolvimento de destacados periódicos da capital, entre eles, a Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal. Um leitor que acompanhasse os principais jornais cariocas entre abril e novembro de 1953 observaria um fato inédito: a própria imprensa ocupando lugar de destaque nos noticiários. Nesse período, a CPI apurava denúncias de que o então presidente Getúlio Vargas teria intercedido na liberação de um empréstimo do Banco do Brasil para que fosse criado o jornal Última Hora, de propriedade de Samuel Wainer. A oposição condenava a atitude do governo de usar o dinheiro público em favor de partidários.
Instaurada em abril de 1953 na Câmara dos Deputados, a CPI nasceu do pressuposto de que o financiamento concedido por um órgão público a Última Hora se distanciara das condutas legalmente adotadas. Perguntava-se que critérios haviam norteado a liberação de financiamentos públicos para o jornal. A Última Hora preenchia as exigências administrativas para pleitear ajuda oficial? Um dos paradoxos desse caso consiste no fato de que denúncias em torno de um único jornal acabaram por colocar em debate as relações do governo com o conjunto da imprensa.
“Centro da corrupção”
Na medida em que o caso ganhou repercussão com a instalação da CPI pedida pelos deputados da UDN, toda a imprensa passou a ser objeto de investigação. As pressões para influenciar seus rumos quanto ao sentido e alcance das investigações foram acompanhadas de noticiários indicando também a postura de outros jornais e não só a da Última Hora. Que outros jornais recebiam ou receberam subsídios oficiais? Qual a situação financeira das empresas jornalísticas quanto às dívidas com o Estado? Que jornais estabeleceram contratos de publicidade com o governo? Essas questões indicam que a CPI acabou por constituir-se um fórum de debates sobre o funcionamento das instituições nacionais, entre elas a imprensa.
Em apoio à campanha contra o jornalÚltima Hora e o governo Vargas, a UDN resolveu homenagear Carlos Lacerda, convidando-o para um comício na Esplanada do Castelo. Imoralidade, corrupção e crise de confiança no governo foram os temas do discurso do proprietário da Tribuna da Imprensa transmitido pela Rádio Globo em setembro de 1953. Lacerda fazia das investigações da CPI daÚltima Hora o centro das atenções da opinião pública. Acreditamosque o caso Última Hora tornou-se o elo fundamental de uma cadeiaoposicionista que abalou a legitimidade do governo Vargas.Defendo o ponto de vista de que a desestabilização do trabalhismogetulista na direção do Estado teve origem na imprensa, sobretudocom o surgimento de uma questão sobre a imprensa, no momento emque o presidente Vargas passou a ser identificado como o responsávelpelo aparecimento de um novo concorrente no mercado jornalístico.
Diversos representantes da imprensa sentiram-se diretamente ameaçados com a criação do jornal Última Hora e a instalação da CPI possibilitou dar maior visibilidade às denúncias de corrupção do governo, tema central da oposição para demolir o getulismo e neutralizar os seus resultados políticos. Dessa ótica, a campanha contra a Última Hora pode ser entendida como a contrapartida da oposição à campanha pela Petrobrás, assunto que mais mobilizou a opinião pública a partir de 1951 e cujos efeitos foram sentidos nas bases da UDN, no movimento sindical e nas forças armadas. A UDN passou por uma crise de identidade ao defender o monopólio estatal para o Petróleo. O movimento sindical viu expandir suas atividades e os debates políticos intensificaram-se no interior das corporações militares. Enquanto a campanha pela Petrobrás liderada pelos grupos nacionalistas e segmentos de esquerda possibilitou colocar em pauta temas como os entraves ao desenvolvimento econômico do país, a industrialização, o capital estrangeiro e a soberania nacional, a campanha contra o jornal Última Hora liderada pela oposição liberal fechou o discurso em torno das denúncias contra a corrupção. O caso Última Hora, segundo Lacerda, era a “matriz de outros escândalos”, “próprio centro da corrupção” uma vez que o apoio financeiro ao jornal pressupunha a formação de opinião favorável ao governo e à figura de Vargas, considerado pela Tribuna da Imprensa “o usurpador dos poderes da República, o totalizador das vontades, em suma, o totalitário”.
Credibilidade colocada em dúvida
Dessa forma, os problemas nacionais foram deslocados para o plano moral, ficando a política submetida aos conceitos de mal e de bem absolutos. A nacionalidade de Wainer apareceu em diversas reportagens como sendo um judeu da Bessarábia, um estrangeiro que não teria direito pela Constituição de ser proprietário de uma empresa jornalística. Embora defendesse que os comunistas continuassem fora do jogo político institucional, a Última Hora foi acusada de difundir a ideologia comunista, transformando-se no maior símbolo da corrupção praticada no governo trabalhista de Vargas, já que teria sido criada com recursos públicos então investigados pela CPI e publicava uma opinião que confrontava a legalidade. Corrupção e favoritismo oficial constituíram o binômio associado ao jornal Última Hora, que estaria desequilibrando as leis de mercado com uma concorrência desleal e adotava uma linha editorial de tendências coletivistas, que ameaçava a tradição dos valores cultivados no país, seja na menor esfera social, a da família, seja no plano da organização estatal. O que o jornal representava, passou a encarnar o mal absoluto, enquanto o que lhe era oposição significava o bem absoluto.
O esvaziamento do debate político, quando subordinado aos critérios maniqueístas e acompanhado de campanhas moralistas que fazem dos personagens os principais responsáveis pelos acontecimentos, sempre corresponde à intenção de se encobrir e manter relações de dominação na sociedade. Assim deve ser compreendida a reação deflagrada pela Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal contra a Última Hora, que tomou a forma de uma campanha pela liberdade de imprensa. As primeiras iniciativas desse movimento midiático para manter a hegemonia sobre a informação jornalística partiram de Carlos Lacerda, dono da Tribuna da Imprensa. A campanha ampliou-se durante as investigações da CPI, quando Assis Chateaubriand e, em seguida, Roberto Marinho cederam espaço para Lacerda discursar na Rádio Globo e na TV Tupi, diversificando os meios de expressão da opinião pública.
Num ambiente de conflito entre uma concepção de opinião pública elitista e outra que pretendia incorporar ampla gama de instituições e setores sociais, sendo as massas trabalhadoras decisivas na sua constituição, emergiu a campanha contra o jornal Última Hora. Veiculando acusações de dumping e favoritismo oficial, os adversários de Vargas transformaram o jornal Última Hora e o tema da corrupçãonuma questão política em torno da qual articularam a oposição ao governo. A credibilidade da Última Hora foi colocada em dúvida, de modo a obstruir sua influência e afetar a imagem daquele que era apontado como o responsável pelo seu surgimento: o presidente Getúlio Vargas. A campanha que os representantes liberais conservadores definiram como sendo em favor da liberdade de imprensa tornou-se um meio através do qual os jornais antigetulistas combateram a expansão empresarial do jornal Última Hora. Mais do que uma competição pelo domínio do mercado, o caso Última Hora refletiu uma disputa entre projetos políticos manifestados no campo jornalístico e divulgados para um público que ampliava e sofria mudanças na sua composição em função do crescimento urbano e industrial.
Interesses populares
Desde a sua criação, a Última Hora se viu na condição de um jornal que pretendia, sobretudo, dar voz a um público popular e representar a vontade coletiva, visando ao bem-estar geral da sociedade, ideais presentes nos ensinamentos de Rousseau. O foco do jornal não estaria voltado somente para aqueles setores privilegiados socialmente que, pela elevada formação cultural e patrimônio econômico, sempre dispuseram de acesso à imprensa para divulgar opiniões. Em contraposição ao discurso dos representantes da imprensa liberal, a Última Hora compreendeu a liberdade de imprensa a partir da validade da ação do Estado. As subvenções à imprensa fariam parte da tradição cultural do país. Os jornais Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal eram também financeiramente devedores ao Estado. O apoio das instituições públicas na criação da Última Hora foi justificado como uma obrigação moral do Estado para dar condições à prática da liberdade de expressão de todas as camadas sociais, sobretudo os setores populares que tradicionalmente eram excluídos do debate político. Desse modo, o surgimento da Última Hora concorreria para ampliar o campo da liberdade de imprensa no país, uma vez que este jornal, através do apoio ao governo, procurava expressar a vontade política de amplos setores sociais da nação.
Diante de um quadro em que as forças trabalhistas fortaleciam o controle sobre a direção do Estado, acentuavam tendências intervencionistas no campo econômico e social e mobilizavam politicamente as massas através de ideais nacionalistas e distributivistas, a imprensa, aos olhos dos liberais, converteu-se num autêntico representante da opinião pública e dos tradicionais valores da sociedade brasileira, que colocavam, tal como formulado por Rui Barbosa, as liberdades individuais em primeiro plano. O discurso da Tribuna da Imprensa, O Globo e O Jornal que fez da imprensa de natureza privada o espaço principal para a defesa de uma economia de mercado e de uma sociedade na qual as elites devem ter o papel preponderante na definição das questões públicas, também reagiu à permanência da Última Hora no ambiente jornalístico: um projeto que via no apoio ao governo trabalhista de Vargas um caminho para expandir o desenvolvimento em bases nacionais e fortalecer os princípios democráticos no país. Ao pedirem o fechamento da Última Hora e tentar excluir o jornal do debate político, os representantes da imprensa liberal negaram a proposição central daquele periódico: a conquista dos direitos de cidadania das massas populares numa democracia substantiva pressupõe sua participação e representação nos centros decisórios e resulta da ação de um Estado responsável, comprometido com políticas que promovam justiça social, de modo a superar as desigualdades criadas pela ordem social capitalista.
Se fizermos uma avaliação das forças em luta pela direção do Estado no governo Vargas, veremos que havia um relativo equilíbrio. De um lado as forças liberais conservadoras lideradas pela UDN. Contavam com a maioria da imprensa e com o apoio de setores do empresariado, da classe média e dos militares. Eram marcadas por posições anticomunistas, antinacionalistas e, sobretudo, contra a permanência do trabalhismo varguista na vida política nacional. De outro lado as forças trabalhistas favoráveis a um programa nacional-desenvolvimentista. Exerciam domínio sobre o Executivo e mobilizavam politicamente as massas urbanas a partir da estrutura sindical. Tinham também influência sobre diversos segmentos da opinião pública e contavam, sobretudo, com a Última Hora como meio fundamental para difundir no debate público as propostas voltadas aos interesses populares.
É verdade que a exacerbação do clima moralista em torno das denúncias de corrupção do governo atribuídas a Vargas pavimentou o caminho para destituí-lo ilegalmente do poder. Todavia, a reação popular diante da morte de Getúlio adiou por dez anos a atualização do que Florestan Fernandes chama “modelo autocrático burguês de transformação capitalista”.
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Aloysio Castelo de Carvalho é professor da Universidade Federal Fluminense