Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ir além da boca de cena

Alguma tinta se gastou para descrever o fenomenal contorcionismo que levou o vice-governador de São Paulo, Guilherme Afif Domingos, do PSD, ao ministério de Dilma Rousseff. Proeza praticada num mercado em que as moedas de troca são, principalmente, cargos públicos, interesses de lobbies empresariais e corporativos, tempo de televisão em campanhas eleitorais e verbas para obras municipais. Essa feira tem a participação sem culpa de todos os partidos políticos brasileiros, salvo – talvez – o PSOL.

Nenhum dos vendedores e compradores, coletivos ou individuais, tem peso na consciência. Os menos cascudos se abrigam sob a ideia (falsa) de que essas ações estão dentro das regras da democracia possível no Brasil.

A imprensa geralmente mescla suas críticas com preferências, alinhamentos ou idiossincrasias. Isso retira credibilidade às denúncias. Especialmente num quadro artificialmente polarizado para sustentar a exclusividade do duopólio PT-PSDB. Duopólio que parece estar chegando ao esgotamento com o declínio dos tucanos.

A tropa tenta

Os editores mais competentes têm consciência de que a credibilidade é o segredo do negócio, mas são prepostos dos donos, que com muita facilidade se dispõem a mandar às favas a qualidade, se isso lhes parecer útil para tornar rentável a empresa. Daí para frente entraríamos no terreno das ilusões, do despreparo e do cinismo dos patrões. Não é o propósito deste tópico.

O trabalho dos repórteres, matéria-prima de que são feitas as edições, é geralmente marcado pela busca de isenção profissional, a despeito de muitas escorregadelas – para “preservar a fonte” ou mesmo por ingenuidade. Esse trabalho nem sempre é aproveitado pelos editores.

Pacto federativo

O noticiário mais recente sobre Afif cumpriu, em alguns jornais, o dever de contrapor ao desembaraço dos atores o alerta da memória e argumentos técnicos fornecidos por especialistas como os professores de direito Floriano de Azevedo Marques (USP) e Carlos Ari Sundfeld (FGV).

Na edição de quarta-feira (1/5) do Estado de S.Paulo, Marques disse que esse tipo de acúmulo de cargos não tem previsão constitucional e fere o pacto federativo:

“Nesse caso, você acaba tendo, indiretamente, uma ascendência hierárquica do presidente da República sobre alguém que é ocupante de um alto cargo do Executivo num estado da Federação. É como se você tivesse o potencial governador sujeito ao comando hierárquico do presidente da República, o que é quase uma intervenção direta no estado”.

Sundfeld publicara na véspera artigo no qual explicou: a Constituição determina que o governador perca o mandato ao assumir outro cargo. O texto só não inclui o vice na mesma regra para permitir que ele possa, eventualmente, ocupar uma secretaria no âmbito estadual.

No capítulo da memória, a reportagem traz um box em que, sob o título “Para lembrar”, são mencionadas algumas tijoladas com que Afif brindou Dilma quando ele ainda ostentava identidade “oposicionista”.

Clã malufista

O Globo online (6/5) havia oferecido ao leitor um robusto painel do ecletismo de Afif, sob o título “Novo ministro de Dilma, Afif tem passado malufista. Já foi um dos políticos mais ligados ao deputado Paulo Maluf (PP-SP), além de secretário de Pitta e Serra” (a matéria, assinada por Germano Oliveira, foi publicada na edição de 8/5 da versão impressa). No UOL há uma boa recapitulação da trajetória de Afif (veja aqui).

No Valor (8/5), uma análise de Cristian Klein mostra curiosa troca de papéis entre Afif e o ex-prefeito Gilberto Kassab, outro egresso do malufismo. Em 1989, quando Afif concorreu à presidência da República, Kassab foi seu emissário, sob a égide da Associação Comercial de São Paulo. Agora, Kassab usou Afif para testar o desembarque de seu partido na seara governista. Funcionou.

Klein aponta convergência de interesses entre a expansão do consumo promovida pelos governos lulistas como estratégia de crescimento econômico – somada à chamada inclusão social – e os ganhos obtidos pelo comércio. Afif foi duas vezes presidente da Associação Comercial de São Paulo e é vice da entidade atualmente.

Molde convencional

A reportagem do Estado ouviu no Planalto o argumento de que a presidente Dilma “estava decidida a ‘pensar fora da caixa’ para trazer o PSD para o governo e tentar, com isso, turbinar o seu tempo de TV na campanha à reeleição em um minuto e 39 segundos, o terceiro maior tempo de propaganda depois do PT e do PMDB”.

O raciocínio não se sustenta. Se foi para ganhar mais tempo na TV – e não para melhorar o desempenho de seu governo – usando métodos arcaicos que fazem da democracia brasileira um jogo de malandragens hoje tão escancarado a ponto de dispensar o argumento da “governabilidade”, onde está o “pensar fora da caixa”?

Organizações patronais

Uma fonte de informações importante desconsiderada pela mídia: o que são e como funcionam entidades patronais em São Paulo – Fiesp, Federação do Comércio e Associação Comercial? Afif controla a Associação Comercial, Paulo Skaf usa ostensivamente a Fiesp para conquistar visibilidade que lhe permita ser candidato do PMDB ao governo de São Paulo em 2014. A Federação do Comércio é presidida continuamente há trinta anos pelo empresário Abram Sazjman. (A seu favor, o apoio pleno ao trabalho cultural de Danilo Miranda, no Sesc.)

O eleito

Afif, em sucessivas declarações, disse que não cogita renunciar ao cargo de vice-governador porque se trata de um mandato eletivo. Como se ele tivesse sido eleito. Não foi. O eleito foi Geraldo Alckmin. Por mais que a aliança com o PFL tenha sido funcional para o PSDB de Alckmin na eleição de 2010, o eleitor votou nele, não em seu vice. Dizer que o voto foi na chapa é forçar a mão. Essas alianças são estabelecidas muito acima – e muito abaixo – da percepção do eleitor. Os jornais não ouviram ninguém sobre esse argumento de Afif. Ele merece uma digressão.

Vice era avulso

No passado, os candidatos a presidente e a vice recebiam votos em eleições separadas, embora realizadas simultaneamente. Getúlio Vargas (PTB) e Café Filho (PSP, o partido de Ademar de Barros) concorreram coligados, em 1950, mas quando Vargas se suicidou, em 1954, e Café assumiu a presidência, nomeou um ministério de antagonistas de Getúlio e fez uma política nos moldes pregados pela oposição ao getulismo, até ser derrubado, em 1955.

O imbróglio mais danoso ocorreu entre 1961, renúncia de Jânio Quadros, e o golpe de 1964, quando o presidente João Goulart foi derrubado e o regime democrático da Constituição de 1946, interrompido. Em 1955, após o suicídio de Getúlio, Jango, principal líder do PTB (o legítimo, criado por Vargas), foi eleito vice de Juscelino Kubitschek, com quem formara chapa. Nessa eleição, Jango teve para vice 600 mil votos mais do que JK para presidente.

Comitês Jan-Jan

Em 1960, Jango foi companheiro de chapa do marechal Henrique Lott (PSD). Jânio formou chapa com Mílton Campos, da UDN, mas chegaram a ser montados em diversos pontos do país comitês Jan-Jan (Jânio-Jango). Quando Jânio renunciou, após tentativa frustrada de dar um golpe de Estado, seus ministros militares (ainda não havia a pasta da Defesa, cada uma das forças armadas tinha seu ministério) se opuseram à posse de Jango.

O parlamentarismo foi a solução de compromisso e o deputado Tancredo Neves (PSD), designado primeiro-ministro pelo Congresso. Em janeiro de 1963, um plebiscito reinstituiu o regime presidencialista. Jango levantou a bandeira das reformas de base – agrária, urbana, eleitoral, bancária, administrativa, fiscal, entre outras – e fez avaliações políticas erradas, enquanto seus opositores preparavam o golpe que o derrubaria em 1º de abril de 1964.

Aureliano

Os vice-presidentes do regime militar foram decorativos e nunca assumiram, com uma exceção, como se verá mais adiante. Quando o presidente Costa e Silva ficou impossibilitado de continuar em seu cargo, devido a um derrame cerebral, o vice que havia sido eleito indiretamente com ele, Pedro Aleixo, foi impedido pela cúpula militar de assumir. O poder ficou nas mãos de uma junta militar.

Os dois generais-presidentes que sucederam Costa e Silva – Emílio Médici e Ernesto Geisel – tiveram como vices um almirante e um general. O sucessor de Geisel, João Figueiredo, foi eleito indiretamente em chapa com Aureliano Chaves, ex-governador e ex-deputado da Arena de Minas Gerais.

Aureliano assumiu a presidência 14 vezes, numa delas, em 1981, por 60 dias, devido a um infarto sofrido por Figueiredo, e noutra, em 1983, por 44 dias, quando o presidente se licenciou para fazer nos Estados Unidos uma cirurgia cardíaca. Aureliano não foi vaquinha de presépio e rompeu com o regime em 1984, após ele e Mário Andreazza terem sido derrotados por Paulo Maluf na convenção do PDS (partido que sucedeu a Arena e no qual Afif começou sua carreira) para concorrer às eleições indiretas que se realizariam em janeiro de 1985.

Sarney

Quem também rompeu com o regime nessa época, após ter sido presidente do PDS e, portanto, um dos mais importantes políticos civis ligados à ditadura, foi José Sarney. Tancredo foi eleito indiretamente, não assumiu, morreu, e Sarney foi o primeiro presidente da redemocratização. Já se praticava o contorcionismo que se tornou norma, mas a causa era nobre: livrar o país do jugo militar.

Os constituintes de 1988 foram sensíveis à constatação do ex-deputado e ex-ministro Afonso Arinos de Melo Franco – chefe de uma comissão designada por Sarney para elaborar um anteprojeto de Constituição – segundo a qual eleição separada de presidente e vice foi ingrediente essencial de tremendas crises políticas. A nova Carta determinou que os candidatos a presidente e vice deveriam concorrer numa mesma chapa, se não pelo mesmo partido. Acabou o voto em separado.

Itamar

Nem assim as relações entre presidente e vice se tornaram imunes a estresses. No primeiro mandato de um presidente eleito diretamente desde 1960, Fernando Collor de Melo renunciou para não ser destituído pelo Congresso. A encrenca, entretanto, seria salutar.

Collor tivera uma trajetória governista durante o regime militar. Fora prefeito nomeado de Maceió, filiado à Arena, pela qual se elegeu em 1982 deputado federal. Votou no Colégio Eleitoral de 1985 em Maluf, seu padrinho de casamento (o segundo) com Rosane Malta, pertencente a uma família influente no interior de Alagoas.

Quando o PMDB se mostrou um polo alternativo de poder, Collor passou para o partido de Ulysses Guimarães e se elegeu governador. Rompeu com Sarney quanto este pleiteou o quinto ano de mandato (que lhe foi concedido), fez campanha para presidente vestindo o figurino udenista de moralizador – depois de ter tentado sem sucesso ser candidato a vice com Mario Covas (PSDB) e depois com Ulysses –, e ganhou de Lula, o candidato do PT, no segundo turno.

O vice de Collor foi Itamar Franco, que começou a carreira política no PTB verdadeiro e, quando os partidos foram extintos, foi para o MDB, depois para o PMDB. Para concorrer em chapa com Collor, Itamar se filiou ao partido criado pelo ex-governador de Alagoas, o PRN, mas ao assumir a presidência, depois da renúncia de Collor, derrubado por erros políticos e acusações de corrupção que provocaram seu impeachment, fez um governo praticamente de união nacional (o PT se excluiu da ampla frente então formada).

Impedimento político

Esse longo desvio pela história política do país destina-se a afirmar que se Afif estivesse empenhado em honrar a posição a que chegou pelo voto, na chapa de Alckmin, não poderia ter aceitado o convite de Dilma. Afif diz que não há impedimento jurídico à sua decisão de ser ministro sem deixar de ser vice em São Paulo.

O ex-vice e ex-governador de São Paulo Alberto Goldman diz que, se não há impedimento jurídico, politicamente a manobra é inaceitável: “Aqui com o PSDB, lá com o PT. Para onde vai a coerência?” Goldman pergunta ainda como o eleitor vai interpretar essa dupla militância.

Lembo e o PCC

O ex-governador Claudio Lembo afirma que não há impedimento legal, porque vice é uma expectativa, não um cargo. Tese formalista, marota e surrada, que a própria história dele, Lembo, desmente. Ele compôs a chapa com Geraldo Alckmin para o governo de São Paulo em 2002. Assumiu o governo em março de 2006. Foi uma substituição programada, porque Alckmin deixou o cargo para concorrer à presidência, contra Lula. Ou seja, Lembo pôde se preparar para a nova tarefa.

Mesmo assim, quando estourou a rebelião do PCC que paralisou a capital paulista, em maio de 2006, Lembo ficou perdido no tiroteio. Sua resposta foi promover um acordo com a organização criminosa (não se infira aqui que Alckmin teria feito melhor; sem chance). Para mudar o foco, Lembo usou uma retórica teatral descasada de seu perfil de tradicional militante civil do regime militar: a “culpa” seria “da elite branca, má e perversa”.

Como se “a elite” tivesse administrado o sistema carcerário, a corrupção e a truculência das polícias, e não o PMDB (1983-1994) e o PSDB (desde 1995, sempre em aliança com o então PFL, depois DEM; aliás, ao fazer aliança com Maluf, e com malufistas praticantes e criptomalufistas, Lula apenas imita o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que não mediu meios para obter a reeleição).

Imagine-se agora um cenário em que Afif, simples mortal desprovido de superpoderes, passa meses trabalhando em Brasília, atracado com a causa difícil de diminuir a burocracia que cria dificuldades para vender facilidades, e se vê na contingência de assumir o governo paulista durante uma onda de violência, um surto epidêmico, uma catástrofe natural de grandes proporções, uma crise política.

Não é mais razoável que o presidente da Assembleia Legislativa seja o sucessor do governador, simplesmente pelo fato de ser o chefe de um dos poderes e permanecer no estado, envolvido continuamente com os problemas paulistas?

Nem carne, nem peixe

Aos que consideram a grande imprensa brasileira uma trincheira do oposicionismo mais implacável, sugere-se um minutinho de reflexão: por que nenhum dirigente petista foi solicitado a se manifestar sobre a inusitada manobra de Dilma, Kassab e Afif?

Aos que a consideram insuficientemente governista, encaminha-se outra pergunta: por que, passada a efervescência de uma notícia sensacional, os governos – federal, estaduais, municipais – são sempre tratados como se suas práticas fossem a coisa mais natural do mundo?

Se não houver contestação judicial da pretensão de Afif, ou se houver e não prosperar, o episódio desaparecerá do radar da imprensa e, portanto, sumirá da vista do leitor-eleitor. Será substituído pela retórica do novo ministro.

A narrativa lúcida

O momento brasileiro não é marcado apenas pela confusão política e ideológica. Essa confusão subordina necessariamente a mídia mais independente (ou menos dependente), que, com equipes e recursos cada vez menores e cada vez mais viciada em notícias produzidas pelos governos, tende a negligenciar a preciosa função da crítica e a se deixar pautar pelas agendas dos poderes e dos contrapoderes.

Quando jornais ou revistas decidem se aprofundar na cobertura de um assunto – o que é exceção, nem de longe regra –, sua relevância e seu papel na vida nacional crescem exponencialmente. Não é indispensável fazer história, no sentido épico. É preciso ter um mínimo de recuo para apreender a cena mais ampla. E competência para produzir uma narrativa apoiada em informações de boa qualidade. Por mais delicado que seja se aproximar do poder sem ser envenenado por ele.