Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A exposição da barbárie

Os noticiários impressos e eletrônicos, em suas versões diárias, têm promovido ampla oferta de cenas chocantes, seja em fotos, seja em vídeos, a respeito da ‘narrativa do horror’ que, em prisões iraquianas, são protagonizadas pela nação mais poderosa do mundo. A esta protetora e benfeitora nação, em nome de seu arsenal militar, parece caber a nobre missão de proteger, fortalecer a liberdade e a democracia e, ainda, disseminá-la por povos que, até então, não foram abençoados por essa graça.

A julgarmos pelas matérias divulgadas, não sabemos bem de que modelo de liberdade e democracia os EUA são formuladores e representantes, dadas as atrocidades das quais seus obedientes soldados e competentes oficiais estão incumbidos de praticar. Uma coisa, porém, é certa: leitores e telespectadores do mundo recebem, via sistema midiático, preciosas lições quanto a atualizados métodos de tortura dos quais cada cidadão deve extrair condutas exemplares. Sejamos todos eficazes torturadores de plantão para, quando necessário for, sabermos como devemos salvaguardar a santa liberdade e a soberana deusa, a democracia. Pelo menos, são essas duas entidades divinas que a mais avançada nação do mundo afirma que são. Em nome delas, tudo está legitimado.

A perversão do ‘bem’

Os relatos e imagens, a cada dia atualizados, inundam páginas e telas de periódicos e telejornais, dando conta de requintados atos de crueldade e de desmedida tirania, capaz de despertar inveja em Calígula, Hitler e Saddam, entre outros de ampla galeria. Qual é, afinal, a questão nova que se põe agora em relação a horrores de outros tempos?

O dado diferenciador reside na rapidez e na transparência com que tais práticas chegam ao conhecimento do restante do mundo, graças a eficiente rede de comunicação. Sim, mas e daí? Bem, essa é justamente a questão. Como a mídia se comporta em tal quadro? Recebe o material e repassa ao público, mediante a fatura sob a forma de vendas ampliadas e audiências multiplicadas. Sendo a fórmula rentável a seus imediatos interesses, na verdade, ainda que timidamente, torce por novas remessas e faturas.

Quanto ao público, fica a sensação de que vivemos tempos nos quais a perversão é uma virtude. A indignação, se já não for uma reação ultrapassada, circunscreve-se a breves momentos ou rápidas conversas aqui e ali. Mídia, governos, organizações mundiais, nada se move para uma ação à altura de produzir um ‘basta!’. Todos cumprem suas limitadas e burocráticas funções em seus respectivos cargos e profissões. Todos são bem-comportados. A ‘perversão’ do ‘bem’ trava sangrenta batalha contra o ‘deus’ do mal. É esse o maniqueísmo, em versão tecnológica, com o qual o século 21, no desdobramento da modernidade, substitui o maniqueísmo medieval.

O mundo parece enredado numa lógica capitaneada pelo ‘despotismo democrático’. O rótulo significa nova modalidade-esquizo, produto da ‘tanatocracia’. Nesse regime, a tirania e a democracia firmam o pacto de não-agressão mútua, em nome do quê, a vida prossegue em ritmo de normalidade. Quem sabe, talvez, caminhemos para o modelo adaptado às atuais conquistas, cujo formato de última geração seria a transmissão em rede (e em tempo real) das sessões de tortura? Dando asas à imaginação irônica, podemos sonhar com um ‘reality show’, transmitido diretamente de um ‘Coliseu’, inspirado em arquitetura futurista? Tudo é possível, principalmente se, para tanto, continuar colaborando a imobilidade daqueles que dispõem de instrumentos para a ação. Ou será que tudo estará sendo conduzido para a produção de retaliações de efeito ainda mais catastrófico por parte de grupos terroristas, com o intuito de realimentar futuras incursões daqueles que, a qualquer preço, aspiram à hegemonia absoluta?

******

Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro