“Quando vamos ao cinema, olhamos para cima. Quando vemos televisão, olhamos para baixo.” As palavras de Jean-Luc Godard me vieram à cabeça quando li na Folha uma declaração do cineasta Fernando Meirelles que, pouco tempo atrás, seria recebida como herética ou estapafúrdia: “A TV é hoje mais interessante que o cinema” (“Ilustrada, 23/4). E, no entanto, é difícil discordar quando se pensa na qualidade de alguns conteúdos televisivos.
Não se trata de forçar uma comparação que pode ser descartada como artificial ou fútil, já que sempre houve bons conteúdos na TV, assim como maus filmes no cinema. Mas alguma coisa está mudando. A hierarquia implícita na declaração de Godard, que prevalece desde a invenção da TV, está sendo pela primeira vez desafiada, por motivos tecnológicos na origem, mas com implicações que ainda não são claras para o futuro das duas mídias.
Historicamente, todas as teorias do cinema tiveram como fundamento a busca pela especificidade do meio, isto é, a investigação sobre os elementos da linguagem, forma e técnica que lhe conferiam autonomia.
O impacto cultural e econômico da chegada da televisão obrigou o cinema a mergulhar num processo de reinvenção -até por necessidade de sobrevivência, já que a frequência às salas despencou. A indústria apostou então em inovações que tentaram preservar, com êxito variado, o caráter único da experiência cinematográfica.
A mensagem formulada pelos teóricos passou a ser esta: por mais cômoda que seja para o espectador, alterando seus hábitos de consumo audiovisual, a televisão jamais terá a espessura estética e a força sedutora do cinema. Este simplesmente não cabe na tela da TV, um meio inferior e vulgar na sua essência.
Isso está acabando. A convergência digital eliminou, primeiro, a própria materialidade da diferença: com o fim anunciado da película, a imagem televisiva e a imagem cinematográfica passam a compartilhar a condição de informação pura, que pode circular nas mesmas e em múltiplas telas.
Novos modelos
Há outros processos em curso: se o cinema não cabia na TV, conteúdos tipicamente televisivos já invadem as salas, como eventos esportivos. Por outro lado, nasce uma nova cinefilia facilitada, paradoxalmente, pelo YouTube, que se torna o meio de acesso básico ao acervo cinematográfico do passado: adolescentes chegam à “nouvelle vague” e ao cinema novo por meio da internet.
Dilui-se, assim, a fronteira que separava a experiência compartilhada e nobre da sala escura da experiência dispersiva e banal do consumo doméstico.
Com o fim da especificidade cinematográfica, alicerce teórico do pensamento sobre o meio por mais de um século, cria-se um novo paradigma audiovisual, e quem não compreender esse processo corre o risco de cair na irrelevância.
Por outro lado, a convergência, que costuma ser analisada apenas em termos de tecnologia e serviços, terá também efeitos estéticos preocupantes. Para que os mesmos conteúdos circulem, sem perda expressiva de qualidade, pelas telas do computador e da TV, do cinema e do celular, há o risco de uma convergência de linguagens potencialmente empobrecedora.
Os caminhos e espaços para a invenção autoral serão outros, o que dará talvez razão a Meirelles e tornará obsoleta a visão de Godard: é na TV, e não mais no cinema, que os criadores estão encontrando as condições de desenvolver um laboratório experimental para produzir novos modelos de narrativa audiovisual e de comunicação com o público. O negócio não é olhar para cima nem para baixo, mas para frente.
******
Luciano Trigo, 48, jornalista e escritor, é especialista em regulação da Ancine (Agência Nacional do Cinema)