O noticiário recente sobre política americana aponta que três episódios – chamados genericamente de escândalos – se juntaram à sobrevivência da prisão da Guantánamo, problema antigo, em detrimento da imagem do presidente Barack Obama: escutas telefônicas sofridas por jornalistas da agência de notícias Associated Press (AP), malha-fina do Imposto de Renda contra ONGs ligadas ao Tea Party e uma primeira versão oficial incorreta a respeito do atentado contra o consulado em Bengazi, Líbia, que causou a morte do embaixador americano no país, Christopher Stevens.
O governo Obama diz ter interceptado ligações na AP para descobrir quem revelou fatos que colocavam em risco a vida de agentes americanos. O presidente recusou-se a pedir desculpas à agência e afirmou que o procedimento poderá ser repetido caso considerado novamente necessário.
Sejam quais forem os desdobramentos, é improvável que o assunto saia do radar da mídia e dos marqueteiros a serviço dos dois partidos americanos e de grupos de pressão que giram em torno deles.
Denúncia abandonada
No Brasil, as coisas não são bem assim. O jornal A Gazeta, de Vitória, sofreu em 2005 escutas telefônicas ilegais no contexto das investigações sobre o assassinato do juiz Alexandre Martins, ocorrido dois anos antes.
O governador era Paulo Hartung, e a Secretaria de Segurança, de onde partira o pedido de escuta concedido pelo Judiciário local, era dirigida pelo delegado da Polícia Federal Rodney Miranda.
O jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo Victor Gentilli, colaborador do Observatório da Imprensa, relata que o jornal protestou veementemente contra o atentado à liberdade de expressão durante um mês, depois abandonou o assunto. A tal ponto que, em março de 2013, reportagem sobre os dez anos da morte do juiz nem menciona o episódio.
Em alguns momentos, nesses anos, Gentilli questionou dirigentes do jornal sobre o silêncio. A resposta era: se surgissem fatos novos, eles seriam noticiados. Para a Justiça, o assunto está encerrado. Venceu a tese de que a Gazeta não foi alvo de interceptação, mas vítima de erro de um funcionário da empresa telefônica local.
Ninguém checou nada?
A polícia teria pedido o telefone da empresa de fachada de um criminoso e recebido o de uma linha PABX da empresa jornalística. “Houve prorrogação do pedido de interceptação, concedido pela Judiciário. Ora, se os policiais encarregados da escuta constataram que o número não era da empresa visada, ou se não estavam ouvindo o que era gravado, por que solicitaram a prorrogação?”, questiona Gentilli. “E o desembargador que a concedeu – Pedro Valls Feu Rosa, hoje presidente do Tribunal de Justiça – também não tomou conhecimento de nenhum conteúdo?”
O governador havia mandado comprar um sistema chamado Guardião, usado em diferentes instâncias federais e estaduais, capaz de interceptar simultaneamente centenas de linhas. Ligações de duzentos jornalistas da Gazeta foram grampeadas, embora só dois ou três estivessem designados para cobrir o andamento do processo aberto para punir os assassinos de Alexandre Martins.
Criminalidade antiga
Quem dirigia a Rede Gazeta, que inclui emissoras de TV afiliadas da Globo, mais um jornal (o tabloide Notícia Agora), agência de notícias, emissoras de rádio e portal era Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho, conhecido como Cariê. Hoje, o dirigente do grupo é Lindenberg Neto, apelido Café, presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), condição que, segundo Gentilli, torna menos compreensível o silêncio a respeito do grampo – fato, ao que se saiba, sem paralelo no país. "Silêncio não só da Gazeta, mas da própria ANJ. Esquecer grampos de jornalistas por autoridades é inaceitável", ressalta Gentilli.
A denúncia da espionagem foi feita anonimamente ao Sindicato dos Jornalistas do Espírito Santo. O então governador Hartung deu a Rodney Miranda cinco dias para apurar o que ocorrera. No terceiro, demitiu-o.
O esquadrão da morte capixaba se constituiu nos anos 1960. Na década anterior, ele fora criado no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, por integrantes da Polícia Especial, tropa de choque remanescente do Estado Novo. Na década seguinte, traços marcantes da violência no Espírito Santo – a brutalidade de uma elite reacionária e criminosa, a corrupção policial – se somam no assassinato abjeto da menina Aracelli Cabrera Crespo, de 11 anos de idade. Nos anos 1980, um ex-agente da repressão, acusado de tortura e roubo, o Capitão (essa era sua patente no Exército) Guimarães, agora poderoso bicheiro, desembarca no estado. A década seguinte vê a estruturação do esquadrão da morte com o rótulo de Scuderie Le Cocq.
Bicheiro no poder
Gentilli aponta alguns antecedentes da execução do juiz:
“O crime organizado se encorpou no Espírito Santo durante o governo de Vítor Buaiz (PT). Com seu sucessor, José Ignácio Ferreira, a situação se agravou a tal ponto que ocupou a máquina do estado, no Executivo e no Legislativo – o chefão José Carlos Gratz, bicheiro ostensivo, foi eleito presidente da Assembleia Legislativa.
“O ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, pediu a intervenção federal no estado ao presidente da República, Fernando Henrique, após o assassinato, em abril de 2002, do advogado Marcelo Denadai, que se preparava para formalizar denúncia contra 12 empresas supostamente envolvidas em fraudes nos 78 municípios capixabas, entre eles Vitória, e em um do Rio de Janeiro.
“FHC primeiro concordou, depois mudou de ideia. Foi pressionado por políticos do Espírito Santo: era ano de campanha eleitoral. Além disso, alegou que a decretação da intervenção travaria pautas importantes do Congresso Nacional. Reale Júnior pediu demissão. FHC designou, então, uma missão especial integrada por juízes, promotores e policiais federais para combater o crime organizado.”
Homicídio anunciado
“O juiz Alexandre e Rodney Miranda – participante destacado da operação que, com a descoberta de milhões de reais num escritório de Roseana Sarney (PFL), a fizera desistir de concorrer à presidência da República em 2002 – integravam a missão”, prossegue Gentilli. “Paulo Hartung, que fora prefeito de Vitória pelo PSDB (1993-96), elegeu-se governador pelo PSB (ele ingressaria depois no PMDB) e sob a bandeira da moralização do estado. Ao tomar posse, em 2003, nomeou Miranda para a Secretaria de Segurança, mas durante os três primeiros meses de governo não o recebeu. Em 24 de março, dia do assassinato, foi chamado às pressas, evidentemente”.
No dia 11, o juiz ouvira de um presidiário denúncias de relacionamento de altas autoridades do Espírito Santo com criminosos comuns, segundo relato de Maria Elena Azevedo no site Congresso em Foco (“Um crime e seu entorno”, publicado originalmente em 30/3/2007; até 24/5, o texto estava truncado no site, por motivos técnicos). Ele e o também juiz Carlos Eduardo Ribeiro Lemos investigavam a morte de Marcelo Denadai.
Três dias antes de ser morto, Alexandre e Carlos Eduardo – os dois haviam denunciado em 2001 o juiz Antonio Leopoldo Teixeira, de uma vara de Execuções Penais, por conceder benefícios ilegais a pistoleiros e traficantes – haviam sido alertados pelo chefe da missão especial, subprocurador da República José Roberto Santoro, de que havia uma operação em marcha para matar um dos dois.
Dias antes da eliminação do juiz, segundo depoimento à Polícia de sua treinadora de ginástica, Alexandre Martins lhe dissera que o governador Hartung era quem pretendia matá-lo (o texto de Maria Elena Azevedo no Congresso em Foco remete para cópia do depoimento).
Promessa de moralização
“Hartung veio para moralizar, mas manteve alguns esquemas herdados de seu antecessor, José Ignácio”, aponta Gentilli.
Além disso, seu vice-governador era Lelo Coimbra [hoje deputado federal pelo PMDB-ES], irmão de José Coimbra, então presidente da Scuderie Le Cocq capixaba. A Scuderie Le Cocq do Espírito Santo foi extinta pela Justiça em 2004. Segundo a Procuradoria Geral da República, era uma entidade que “agia como personificação jurídica do crime organizado e como quartel de grupos paramiliares”.
O deputado Lelo Coimbra e um irmão seu, José, moveram ações contra Maria Elena Azevedo por terem sido citados em contexto que, segundo suas petições, associa seus nomes à morte do juiz. O Congresso em Foco se responsabilizou pela defesa da jornalista. Lelo e José foram derrotados em ambos os processos. As sentenças transitaram em julgado.
O processo relativo ao assassinato do juiz Alexandre Martins teve até agora as seguintes consequências, segundo reportagem da Gazeta: sete pessoas (cinco civis e dois ex-sargentos da PM-ES) foram condenadas, das quais duas continuam presas, uma está livre e quatro cumprem pena em liberdade. São os executores e seu esquema de apoio.
“Mas as pessoas acusadas como mandantes ainda não sentaram no banco dos réus”, constata a matéria.
Depois de tentada a caracterização do assassinato como latrocínio, prevaleceu a tese de que se tratou de crime de mando. Apontados como mandantes foram o juiz Antonio Leopoldo, o coronel da reserva da PM-ES Walter Gomes Ferreira e o ex-policial civiil Cláudio Luiz Andrade Batista, o Calu. Pronunciados, interpuseram recursos que, até agora, adiaram seu julgamento na primeira instância.
Como dantes
Os dois principais personagens do Executivo ligados aos acontecimentos de 2003 continuam juntos politicamente.
Após sua exoneração do governo capixaba, o delegado Rodney Miranda foi secretário de Segurança de Pernambuco. Voltou ao governo de Hartung, surpreendentemente já como homem forte do governador. Em 2010, foi eleito deputado estadual (pelo DEM), com a maior votação entre todos os candidatos à Assembleia Legislativa. Isso não pode ter ocorrido sem um sinal verde de Hartung aos financiadores locais de campanhas eleitorais. Em 2012, Miranda foi eleito prefeito de Vila Velha, município vizinho da capital e o mais populoso do Espírito Santo.
Numa notícia de 13/3, o jornal A Gazeta informa que Paulo Hartung e sete outras pessoas são acusados pelo Ministério Público Estadual de gastar R$ 25 milhões na construção, inconclusa, de um posto fiscal em Mimoso do Sul. Entre os denunciados figuram o ex-secretário da Fazenda José Teófilo, filiado ao PSDB, e Bruno Negris, atual presidente do Banestes (Banco do Estado do Espírito Santo). O MPE pediu o bloqueio dos bens dos oito acusados de improbidade administrativa. É uma entre diversas denúncias que têm Hartung como alvo.
Carrossel de atrações
Não é abusivo dizer que no Brasil a regra é escândalos da maior gravidade serem rapidamente esquecidos, entre outras razões porque a mídia jornalística, acossada pela mescla sensacionalista de informação com entretenimento, precisa levar ao respeitável público novas atrações no prazo mais curto possível, sem relação com a importância social do fato.
E, o que também é crucial, não tem estrutura para manter um acompanhamento atualizado da maior parte dos casos noticiados ou denunciados. Nem, em sua prática regular, para ligar os pontos da teia que se estende por trás de episódios e situações aparentemente desconectados.
Na verdade, a imprensa, no Brasil e alhures, não tem capacidade para gerar autonomamente nem sequer a maior parte de seu noticiário. É caudatária de declarações públicas ou em off, de press-releases – nem sempre como ponto de partida de reportagens próprias, mas, muitas vezes, substituindo-as –, de informações vazadas por autoridades, políticos e outras pessoas real ou supostamente bem situadas para saber das coisas.
Lógica de mercado
Mas, ainda que tivesse capacidade de produzir um noticiário muito mais exclusivo, amplo, aprofundado e esclarecedor sobre a realidade do país, a imprensa não poderia fazê-lo, porque é indeclinável tarefa dos editores buscar o máximo de audiência, ao lado do máximo de credibilidade possível, idealmente tentando respeitar a inteligência do leitor, atributo frequentemente discutível, mas no qual é imperioso acreditar, sob pena de sucumbir ao cinismo ou à canalhice, ou entrar em depressão.
E busca de audiência a qualquer custo não é função do jornalismo de qualidade, embora às vezes, até mesmo na televisão, qualidade e audiência se deem as mãos.
(Mais do que qualquer outro fator, é isso que, por exemplo, explica a ascensão da TV Globo. A Globo conseguiu e ainda consegue ter qualidade e audiência numa parte relevante de sua programação. Algumas vezes, chega a privilegiar a qualidade. Na maior parte do tempo, a audiência é que puxa o comboio. Volta e meia, o trem descarrilha.)
Vida fácil para a Justiça
Não se entende que a redação da Gazeta tenha se esquecido de um atentado tão grave. A menos que esteja satisfeita com as sentenças da Justiça local a respeito do grampo de 2005. Uma Justiça que, entre outras ações criticadas, respaldadas por instâncias federais, ainda não liberou a ida a júri popular dos denunciados como mandantes do assassinato do juiz Alexandre Martins.