A Itália assombrou o mundo, nos anos 1980, quando sua economia cresceu velozmente apesar da instabilidade política. Para alguns analistas, o crescimento era explicável pelo vigor da economia subterrânea, livre de impostos e do peso do Estado. Houve quem atribuísse a prosperidade precisamente à falta de governo.
A primeira explicação era tosca, mas apontava para um fenômeno ainda pouco estudado: a multiplicação de empresas pequenas e eficientes, vinculadas, em muitos casos, a arranjos produtivos locais – os chamados clusters. A outra explicação era apenas uma bobagem, pois o fato notável, para o observador deste lado do mundo, era exatamente o oposto. Governo é mais que o comando político-partidário exercido no nível mais alto. É também a administração, e este é o dado mais importante na vida quotidiana. A máquina burocrática jamais deixara de funcionar, e a Itália, portanto, nunca ficara realmente desgovernada.
Desgoverno é uma das grandes marcas do dia-a-dia brasileiro e esse tem sido um tema cada vez mais presente na imprensa – embora raramente identificado com todas as letras. A burocracia é fraca na maior parte do setor público e sua condição é agravada pela apropriação partidária de um número excessivo de postos. A patética atuação da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), durante a longa crise do transporte aéreo, é um bom exemplo dos males causados pela mistura de aparelhamento com amadorismo.
Conceito extravagante
A maior parte das agências tem exibido problemas semelhantes. No ano passado, muitas não tinham diretores em número suficiente para reuniões deliberativas. Não tinham porque o governo havia decidido sujeitar as nomeações a suas conveniências político-partidárias. O debate sobre a política de juros, no Brasil, só assume aspectos dramáticos porque o Banco Central, formalmente, ainda é subordinado ao Executivo. Noutros países, ministros e altos funcionários podem criticar a política monetária sem causar crise, porque os limites de poder do chefe de governo e do ministro da Fazenda são conhecidos.
Na Sexta-feira Santa, o pedido de perdão dos controladores do tráfego aéreo à sociedade foi manchete nos maiores jornais. Mas eles só pediram perdão porque o presidente da República, depois de haver atropelado a hierarquia, voltou atrás e deixou à Aeronáutica e à Justiça Militar a solução do problema disciplinar. Na sexta-feira anterior (30/3), o presidente da República havia simplesmente alterado um dos mecanismos mais sensíveis do governo – a cadeia de comando de uma força armada.
Todos os grandes jornais levaram em conta esse mecanismo, na edição de 31 de março, ao usar a palavra motim para classificar a paralisação dos controladores do tráfego aéreo. Deixaram claro, também, o erro cometido pelo presidente quanto tratou um caso de indisciplina como questão de natureza sindical.
A maior parte da imprensa tem dado muito menos ênfase à questão organizacional ao noticiar a distribuição de postos federais entre partidos. Os jornais têm noticiado a briga pelos cargos e pelo controle de orçamentos setoriais, primeiro no primeiro escalão, depois nos níveis subordinados. Mas têm tratado a questão, quase sempre, como se as implicações da partilha fossem estritamente políticas. Não são.
O Estado de S.Paulo chamou a atenção, em editorial publicado em 27 de março, para uma extravagante criação do presidente do PMDB, Michel Temer. Ele inventou o conceito de ‘coalizão administrativa’ para descrever retalhamento administrativo pretendido por seu partido – e certamente por outros componentes da aliança governista.
Aparelhamento sem disfarce
Os escândalos do ano passado – exemplificados pelas bandalheiras nos Correios e noutros órgãos federais – mostraram algumas das conseqüências desse tipo de ‘coalizão’. Muitas outras safadezas seriam descobertas, provavelmente, se os vários órgãos sujeitos ao aparelhamento fossem submetidos um exame cuidadoso. Mas bandalheiras são apenas uma parte, embora gravíssima, do problema. Nenhuma sociedade complexa pode funcionar adequadamente sem uma burocracia pública bem estruturada e imune, tanto quanto possível, aos interesses político-partidários dos grupos no poder.
No Brasil, as tentativas de montagem de uma burocracia pública profissional e estável têm sido descontínuas. Lentamente, a partir dos anos 1930, foram criados alguns centros de excelência. O Banco do Brasil, durante muito tempo, foi o exemplo mais notório. De seus quadros saíram profissionais para diversas áreas de governo.
Houve um esforço importante no período militar, quando muitos funcionários foram estimulados a buscar, no país e no exterior, cursos de mestrado e doutorado. Esse esforço foi quase abandonado nos últimos 20 anos e parte das boas mudanças dos anos anteriores foi perdida.
Nunca se completou a reforma administrativa. Bons quadros foram perdidos em várias ocasiões, núcleos de competência foram dissolvidos e a devastação da burocracia se completou, nos últimos anos, com o loteamento de cargos e o aparelhamento sem disfarces. ‘Governo de coalizão’, no Brasil, significa muito mais que a distribuição de cargos e de orçamentos entre os participantes de uma aliança. Muito raramente os jornais têm procurado mostrar toda a extensão do desastre.
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Jornalista