“Moda”, todo mundo sabe, é a troca cíclica das aparências dos objetos de consumo. Um processo arbitrário no sentido radical da palavra: roupas, utensílios, comportamentos entram e saem de moda por decisão de um grupo técnico, sem cauções racionais ou morais, por mero arbítrio – a moda está acima do belo ou do feio.
É possível, porém, ampliar ainda mais a noção de moda e nela enxergar a própria lógica da sociedade dita “de consumo”. É uma lógica das aparências, isto é, de imagens que não precisam corresponder a substâncias real-históricas para circularem socialmente. Nela, a “mentirinha” é voluntariosa, tem voo próprio. As aparências podem ser desencarnadas, mas não são superficiais: são enganosas porque têm força para enganar – o que socialmente tem de ser levado em séria consideração.
A essa lógica aludia implicitamente o ministro Joaquim Barbosa quando classificou como “de mentirinha” os partidos políticos brasileiros. Na repercussão midiática da declaração do presidente do Supremo Tribunal Federal ficou faltando informação crítica sobre a realidade que lastreia a mentirinha, isto é, sobre o fenômeno dos partidos de aparência política.
Fonte virtual
Trata-se de uma realidade (não apenas brasileira) em que o cerne ideológico de todo partido político – a representação – já perdeu a sua razão histórica de ser. Em termos sumários, os partidos – tradicionalmente concebidos como sujeitos coletivos que interiorizavam a objetividade de uma classe social – esgotaram a possibilidade de representar e de refletir a identidade de uma classe qualquer.
Existem, claro, processos políticos que deixam entrever uma natureza de classe, mas são processos que se autonomizam em face da infraestrutura econômico-social e, ao se organizarem partidariamente, não representam nada além de seus próprios interesses jurídico-burocráticos, embora acossados por lobbies de toda espécie. Como um objeto de moda, o partido é um ectoplasma histórico, um flatus vocis ideológico que, no entanto, tem a sua existência assegurada pelo aparato constitucional e pela classe política comprometida apenas com a reprodução burocrática de si mesma. Apenas a mediação jurídica separa a ideia de partido político da de grife na moda.
Por isso, é possível ler-se em colunas políticas de jornal considerações do tipo “o Meio Ambiente está na moda, e a candidatura de Marina Silva (Rede) ao Planalto força os demais a ter propostas. Mas a vida prática mostra que elas não são para valer” (Ilmar Franco em O Globo, 2/6/2013). Nenhuma delas é para valer (inclusive a da Rede), bem entendido. E esta percepção quanto à validade institucional dos sistemas de representação estende-se à própria classe política, de onde emergem diagnósticos do tipo “a ONU não vale nada. É como o Senado: não vota nada, não representa nada. O que vale é o Conselho de Segurança” (Pedro Simon, senador do PMDB-RS).
Disso tudo sabe muito bem a imprensa em seu conjunto. Por que então tanta repercussão para a frase de Joaquim Barbosa sobre a “mentirinha”?
Em primeiro lugar, porque os holofotes da mídia-moda estão voltados para o magistrado que conduziu o processo do mensalão com insólito rigor, sem espírito de pizzaiolo. Em segundo, porque o indivíduo Joaquim Barbosa não parece ter papas na língua quando se trata de dizer o que pensa, o que o torna uma fonte virtual de acontecimentos midiáticos. Em terceiro, o presidente do STF, primeiro negro a ocupar tal posição, emerge num momento histórico em que esse fenótipo ganha alguma visibilidade social no país.
Nenhuma ideia
Assim, queira ou não, o ministro entrou temporariamente na moda. Isto não significa que a sua identidade existencial e institucional seja análoga à realidade espectral dos partidos, porque integra um dos três poderes republicanos, o Judiciário, cuja influência social parece aumentar precisamente na razão inversa do declínio partidário.
Mas significa, sim, que a pauta jornalística apenas surfa na superfície da onda social, ao privilegiar, como na moda, as mais vazias aparências do real-histórico. Quando se assemelhaà vida que não se vive, a pauta é como um modelo que apenas se exibe na passarela.
Agora que já se está nas primícias da campanha eleitoral para o próximo mandato presidencial, ainda haveria tempo para se refletir sobre os “efeitos de grife” a propósito dos contendores: olhos azuis, famílias de peso et coetera e tal. Mas até o momento, nenhuma ideia, nenhum discurso substantivo, tão só imagens de moda. Sem a perspectiva sócio-crítica de uma informação pública esclarecedora, a mídia pode ser tão só um dispositivo de mentirinha.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro