Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os desafios da sucessão

O presidente do Grupo Abril Roberto Civita morreu em 26/5, aos 76 anos de idade, exatos cinco dias após Ruy Mesquita, do Grupo Estado, aos 88 anos, no mesmo Hospital Sírio Libanês, em São Paulo (ver J&Cia 898). Civita estava internado havia três meses para a correção de um aneurisma abdominal, mas o rompimento da veia aorta e uma hemorragia de grandes proporções, durante a cirurgia para a implantação de um stent, tornaram o quadro grave, a ponto de já naquele momento a empresa ter anunciado a transferência interina da Presidência Executiva do Grupo para o filho Giancarlo Civita, o Gianca.

Desde então, embora representantes da empresa tentassem mostrar algum otimismo, garantindo que em alguns meses Civita voltaria ao comando, já se sabia pelo seu estado de saúde que isso seria quase impossível. Rumores, à época, davam conta de que ele recebera 17 litros de sangue até que a hemorragia fosse estancada, mas não sem as consequências que se seguiram.

Roberto Civita deixou a mulher Maria Antonia, os filhos do primeiro casamento Giancarlo, Roberta e Victor, além de seis netos e enteados. O corpo foi cremado em 27/5 no Crematório Horto da Paz, em Itapecerica da Serra, São Paulo. Mais informações da carreira dele e repercussões imediatas da morte podem ser conferidas no Portal dos Jornalistas (http://migre.me/eLO30).

Patrão, empresário, cidadão

Não será fácil a missão de substituir Roberto Civita. Era um homem determinado, preparado, carismático e, sobretudo, muito querido particularmente pelos cerca de 9 mil colaboradores. Recebeu uma empresa saudável e promissora do pai Victor Civita e, a partir dela, construiu um conglomerado editorial que em 2012 chegou próximo aos R$ 3 bilhões.

Acertou mais do que errou, mas sobretudo empreendeu. Montou negócios e desfez-se deles quando precisou ou achou conveniente; abriu e fechou revistas, atento ao público, ao caixa e ao mercado; mexeu a valer no comando de suas empresas, nomeando e destituindo presidentes e diretores, na busca dos executivos ideais; contrariou (muitos) interesses ao bancar o ritmo alucinante e agressivo de denúncias da Veja, sua filha dileta e da qual se orgulhava de se dizer editor; encarou a educação como missão e como oportunidade de negócios, montando um respeitável conglomerado, além da Fundação Victor Civita, focada na formação de professores; e foi obstinado com a formação profissional, a ponto de, em 2010, estimular e financiar a criação do IAEJ – Instituto de Altos Estudos em Jornalismo, para fomentar projetos e iniciativas educacionais de estudos na área, que deu origem ao primeiro curso de Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, que já segue em sua terceira turma na ESPM.

Patrão, sempre conduziu a Abril como um dos melhores lugares para se trabalhar e não faltam testemunhos a respeito mundo afora. Empresário, investiu, ganhou, perdeu e foi pioneiro em campos como a tevê segmentada e a internet. Cidadão, criticou quando muitos eram só elogios e elogiou quando a crítica era a tônica, além de colocar suas publicações a serviço do ideário que sempre defendeu (ainda que por vezes sob pesadas críticas).

Pai de família, nem sempre teve o tempo que desejaria para os filhos, pela brutal carga de trabalho, mas chegou ao final da vida com os filhos ao seu lado.

A tristeza do precoce adeus

Nos corredores da Abril, o luto oficial é espontâneo. As pessoas, como que em respeito à dor de uma perda de grandes proporções, falam menos e mais baixo, entram nos elevadores sem muita animação para puxar conversa, circulam sem a habitual alegria. Barulhentas por natureza, as redações estão temporariamente mais silenciosas, com fechamentos quase litúrgicos, como diz um editor.

Na tarde da segunda-feira (27/5), enquanto o corpo de Civita estava sendo velado, centenas dos cerca de 3.270 funcionários que trabalham no Novo Edifício Abril, na Marginal do Pinheiros, em São Paulo, deram um abraço simbólico no prédio e bateram palmas para o chefe que partiu.

Como o tempo e a vida não param, já terça-feira (28/5), um dia após a cremação e dois da morte de RC, houve a entrega do Prêmio Abril de Publicidade, um dos mais importantes do País no campo da comunicação, no Auditório Ibirapuera. Claro, não foi cancelado, porque é preciso seguir em frente, mas ficou a amargura pelo infortúnio de proximidade tão indesejada. Na cerimônia, Civita recebeu uma bela homenagem e a festa seguiu seu curso, como tem de ser.

Passados os momentos de contrição, os olhos de todos se voltam para o futuro, para o que acontecerá com a Abril, no pós-Roberto Civita.

Há uma grande expectativa em relação à reestruturação em curso. A empresa, como de resto grande parte da mídia, vê-se diante de um cenário de alta complexidade, e que Roberto vinha enfrentando antes da doença. A diferença é que com ele vivo e à frente dos negócios o remédio poderia ser amargo, mas todos tinham confiança em que a dosagem seria certa, com decisões sóbrias e coerentes com o ideário até aqui construído pela organização. Sem ele, uma sensação de orfandade se apossa e ninguém arrisca prognósticos.

Como apurou este J&Cia, a reestruturação da Editora Abril é inevitável. Embora venha conseguindo manter equilibrada a circulação de seus títulos, a empresa enfrenta uma queda acentuada e contínua de publicidade, que não lhe deixa muitas alternativas. As contas não fecham e serão necessárias medidas que busquem, de um lado, melhorar as receitas e, de outro, reduzir as despesas, binômio que tanto inferniza e atemoriza a vida das organizações e seus colaboradores.

Entender o mercado

Trata-se, de forma objetiva, de fazer mais com menos e aí é que crescem os temores, sobretudo nas áreas de negócios (jornalismo e publicidade). Onde acontecerão os cortes? Nas áreas de negócios, já tão enxutas e em alguns casos no limiar de comprometer o padrão Abril de qualidade? Nas áreas corporativas, aquelas que integram o estafe da alta direção da empresa, em que despontam, além do falecido RC, Jairo Leal, Fábio Barbosa e Giancarlo Civita? Nas demais áreas de apoio?

“Se tiver bom senso, a empresa preservará a área de negócios, que já deu sua cota de sacrifício em cortes recentes e hoje está à beira de um colapso”, diz um editor da casa. “Grande parte de nossas redações tem hoje dez, 15 profissionais e reduzir ainda mais será suicídio”, acrescenta, lembrando que as redações e a publicidade são o coração da empresa e se pararem de pulsar comprometerão todos os demais órgãos, inclusive os altos escalões, que passarão a ter cada vez menos coisas para administrar.

Para entender o que se passa a Abril, empresa conhecida por sua capacidade de gestão e de excelência, é preciso analisar o que acontece com o mercado. Há pelo menos três motivos que explicam a queda de receita publicitária dos meios impressos em geral e das revistas em particular: 1°) a decisão empresarial de concentrar cada vez mais as verbas de publicidade na tevê aberta, sobretudo na Rede Globo, na busca de atingir essa nova e crescente classe média que vem surgindo no País (a despeito da própria perda de audiência dessa mesma tevê aberta em relação a outros meios); 2°) o surgimento de uma nova geração de CEOs, que, acostumados a permanecer temporadas menores numa mesma organização (dois a três anos em média), focam suas ações e investimentos no curtíssimo prazo; e 3°) a consequente mudança nas estratégias de marketing, que estão canalizando as verbas de publicidade cada vez mais para ações de varejo, com o objetivo de retorno imediato.

“Ora – diz um outro editor ouvido por este J&Cia – todos sabem que o meio revista, por suas características editoriais, refinamento e ciclo de maturação, não se presta adequadamente ao varejo, mas sim à construção e consolidação das marcas. Quem anuncia em revista busca a perenidade, tem um olhar de médio e longo prazo. Quem faz varejo anuncia hoje para vender amanhã. É aí que as coisas começam a se complicar para quem, como nós, produz revista. Temos o desafio de entender o que está se passando, estancar e reverter esse processo, e fazer as mudanças necessárias, mas tudo isso sem abrir mão da independência editorial”.

Uma Abril mais dócil?

Essa independência, que Roberto Civita sempre garantiu, 24 horas por dia, nos 365 dias do ano, é o que se teme perder, já que não há, entre os atuais dirigentes da Abril, alguém com aquele perfil, inabalável na defesa de seus ideários e pródigo na construção de inimizades, erguidas tijolo a tijolo a cada denúncia nas páginas das revistas que dirigia.

Com a ausência de RC, quem na Abril teria um perfil parecido para fazer esse papel? O moderado e conciliador Fábio Barbosa, presidente da Abril Mídia e da Abril S/A e homem com uma longa experiência no setor financeiro mas ainda com pouca quilometragem numa empresa jornalística? O filho Giancarlo Civita, agora presidente pleno do Grupo Abril, que também ainda não foi testado de forma mais contundente nas adversidades do negócio, nas pressões mais intensas? Tenderia a empresa a mudar sua conduta editorial em casos mais polêmicos, nas denúncias contra o poder e os poderosos, na sua linguagem muitas vezes agressiva, como hoje é o DNA de sua principal revista, Veja? Teríamos, enfim, uma Abril mais dócil?

Disse um editor da empresa a J&Cia que a morte de RC “aconteceu em paralelo ao outro movimento, que é o da tal reestruturação. Não saberia dizer até que ponto a saída do Jairo [Leal] da operação tem a ver com a saúde do RC. Existia uma crença de que ele não voltaria mais para o dia a dia, que se voltasse para casa já seria uma vitória enorme. A ida do Jairo para o Conselho parece perfeita nesse sentido. É o mais preparado da família (sim, ele é como se fosse de sangue) para representar os Civita no Conselho”.

Gianca, como é conhecido o agora presidente do Conselho de Administração da Abril, em discurso de despedida no velório do pai, e falando em nome dos irmãos, garantiu que não: “A dor indescritível da perda de nosso pai torna-se suportável somente pela certeza de que ele teve uma vida plena em que fez frutificar suas convicções em uma obra memorável. Roberto Civita foi um líder, uma referência de pensamento e ação em benefício da democracia e do avanço social, econômico e cultural do Brasil. Nosso pai era um entusiasta do Brasil. Ele acreditava no Brasil. Durante toda a sua vida mostrou em atos e palavras que uma nação de verdade, viável e justa não nasce ao acaso. Ela precisa ser construída. Ele tinha certeza de que as ferramentas para isso são a educação e a liberdade de expressão. A esses dois fundamentos, que ele via como inseparáveis, nosso pai dedicou sua vida. Como seus filhos, reiteramos o compromisso que já havíamos feito a ele de perseverar na busca da verdade, na melhoria da qualidade de vida dos brasileiros e no fortalecimento das instituições democráticas no Brasil. Esse foi o legado que ele recebeu do nosso avô, Victor Civita. Esse é o legado que eles nos deixou. Vamos ser fiéis a ele”.

Para muitos, uma mudança na postura de Veja não seria necessariamente uma rendição, mas uma volta ao “bom jornalismo” que marcou muitos de seus quase 50 anos de vida. “Isso é balela”, garante um ex-editor, que lá esteve nos tempos de Collor. “A revista sempre mostrou coerência na sua luta contra os poderosos de plantão, nas denúncias contra a corrupção, o mau uso do dinheiro público e os malfeitos em geral. Ao fazer isso já foi taxada de petista, de tucana e agora de uma revista de direita. Veja não mudou, mudaram os grupos de poder e os malfeitos que Veja sempre denunciou e continuará denunciando”.

Mudanças virão

E o chão de fábrica – no caso, das redações –, como estaria reagindo à morte de Civita e ao porvir? J&Cia traz aqui o depoimento de uma editora, que ali já passou por outras crises, nenhuma como essa: “Aqui a coisa está bem triste, como seria de se esperar. Sentimento generalizado: segunda-feira, dia 27, os funcionários deram um abraço simbólico no prédio, com maciça adesão espontânea. Pode-se dizer muita coisa de RC, mas nos quesitos gentileza, educação e carisma o homem era uma unanimidade do bem. Sempre muito solícito e sorridente, era do tipo que segurava a porta do elevador para o pessoal da limpeza, por exemplo. Por suas escolhas políticas angariou, fora daqui, muitos desafetos, mas internamente esse viés se dissipava. Era o patrão e pronto. Há tempos procurava seu sucessor sem muito êxito e agora fica a pergunta: o filho que assume está à altura da tarefa? Novos tempos e turbulências se avizinham, é o pensamento comum. Ninguém sabe bem o que acontecerá com a empresa. Os pessimistas já pensam no pior: enxugamento radical dos quadros e fechamento de muitas revistas. Outros acham que ele vai simplesmente dar continuidade ao trabalho do pai. Há quem diga que ele não gosta dos problemas trazidos pela Veja, os processos, as encrencas com os políticos. Isso dito, é a revista que banca a editora como um todo e em time que está ganhando não se mexe. Existe uma corrente que acha que chegou a hora de pitacos na Veja, que sempre teve o dr. Roberto como para-raios e ninguém ousava passar por cima dele, obviamente. Mas e agora? O que ninguém discorda: mudanças estão a caminho. Só resta saber se serão para o bem – ou para o mal, com a vitória de alguns burocratas enciumados com o peso da revista no grupo. Há mesmo quem cogite a subida de Eurípedes Alcântara para o posto de diretor-presidente… Quem viver, verá. Aguardemos os próximos e emocionantes capítulos”.

De um repórter de uma das revistas mensais, J&Cia recebeu o seguinte depoimento: “Dia de velório com cara de dia de velório. Foi assim esta segunda-feira que agora está terminando. Triste partida, um tanto precoce, a de Roberto Civita. Estamos todos agora na expectativa do que vão fazer com o legado por ele deixado. E principalmente com o legado de convicções, pois o material, dos negócios, embora interesse a todos que vivemos dele, creio que é menos importante. A questão é mesmo a das ideias, das bandeiras, da disposição de criticar e lutar. O RC, concorde-se ou não com o que ele representava, tinha uma tenacidade ímpar. Vamos ver o que o tempo nos trará”.

E um editor afirmou a J&Cia que a morte de RC, mesmo esperada, baqueou muita gente mesmo: “Por conta dela e da espera da reestruturação (que deve ser anunciada terça que vem), ficou tudo muito paralisado. (…) Acho que está assim: a vida continua no operacional, mas o estratégico deu uma travada. Semana que vem isso deve mudar. Veremos”.