Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Tranco de 2013 é repeteco do ‘choque do petróleo’

A equação jornal-papel produziu avanços extraordinários ao longo dos quatro séculos de história comum. Começou a azedar há cerca de quarenta anos, em 6 de outubro de 1973, com o quarto confronto árabe-israelense, conhecido como “Guerra do Yon Kippur”.

Antes mesmo do cessar-fogo, os países produtores de petróleo reunidos na OPEP aumentaram drasticamente o preço do barril – de 3 dólares pulou para 30. Era o “choque do petróleo” que arruinou a economia mundial e produziu a recessão de 1974.

A imprensa foi uma de suas vítimas, sobretudo nos países condenados a importar o papel-jornal de fontes distantes. Caso do Brasil: nossa produção era ínfima, o insumo vinha majoritariamente da América do Norte (EUA e Canadá), países escandinavos (Noruega, Suécia e Finlândia) e alguma coisa do Chile.

O fantasma, como sempre, veio acompanhado de um pacote alternativo com maravilhosas promessas: a TV, a mídia do futuro, tornava-se imbatível, universal. Acessível inclusive a analfabetos, formidável ferramenta de inclusão social, capaz de popularizar desumanas ditaduras.

Transmitida em sedutoras cores graças aos satélites e câmeras portáteis, transistorizadas, cobria os acontecimentos quase instantaneamente e os levava, com pequeno custo, à sala de jantar dos espectadores.

Todos os jornais – inclusive vespertinos do dia – passaram a ser de véspera. A TV era o aqui, agora. O escândalo de Watergate estourara na mídia impressa em junho de 1972, mas empolgava nos telejornais em horário nobre das redes de americanas.

Jornalismo maiúsculo

A mídia não tratava da mídia, sobretudo porque o assunto era tabu para os censores e a indústria ainda não estava organizada corporativamente: no Rio de Janeiro, funcionava um precário sindicato empresarial comandado pelo deputado Chagas Freitas (dono da próspera empresa que editava O Dia e A Notícia) encarregado de manter a interlocução entre Roberto Marinho de O Globo e Nascimento Brito, do Jornal do Brasil, que não se falavam. Este e os Mesquita mantinham intenso contato. A Folha de S.Paulo ainda não contava.

A direção do JB reagiu prontamente ao choque: determinou ao editor-chefe que estudasse um corte imediato no número de páginas, diminuição no tamanho das matérias (os jornais ainda não estavam cadernizados como agora) e a suspensão de novas contratações.

Perspectivas sombrias. Nas reuniões com o comando da empresa, o editor-chefe tentou demonstrar que seria mais racional e estratégico aumentar o preço do exemplar e das assinaturas do que desfigurar um jornal que se impunha nacionalmente justamente pelo conteúdo. O leitor do Jornal do Brasil – argumentava – tinha poder aquisitivo, suportaria um aumento. O consumidor sabe o que é bom, não se importa em pagar por isso. Além disso, uma imprensa de qualidade, inteligente, adulta, seria capaz de apressar a redemocratização do país.

O problema era O Globo: geralmente os dois concorrentes – devidamente conectados por meio de Chagas Freitas – faziam os reajustes simultaneamente. E se o jornal dos Marinho – cuja rede de TV crescia em penetração e faturamento publicitário – resolvesse não acompanhar o Jornal do Brasil no aumento do preço de capa ?

Enquanto corriam avaliações e negociações, o editor-chefe do JB escreveu um artigo para a edição de dezembro do Caderno de Jornalismo e Comunicação. O título: “A crise do papel e o papel do jornal”. Pretendia ser uma convocação para a preservação do jornalismo impresso e dos valores culturais que encarnava. O editor-chefe foi demitido (por outras razões, a justificativa oficial foi “indisciplina”), a revista deixou de circular, o texto foi perdido. A ideia central converteu-se no livro O papel do jornal.

O choque do petróleo foi absorvido, o jornalismo impresso saiu incólume e manteve a sua hegemonia intocável por outras três décadas graças à bravura de publishers forjados na tradição do jornalismo dito “romântico” (na verdade, jornalismo sem qualquer qualificativo), infelizmente substituídos pelos “executivos” capazes de comandar qualquer empresa – da fábrica de salsichas a supermercados e bancos.

Cortes na carne

A partir do início de abril de 2013, a equação jornal-papel ganhou novamente uma dramática entonação. No Brasil, ao contrário dos EUA, a ameaça não veio montada na internet. A justificativa para o banho de sangue nas principais redações foi a queda no faturamento publicitário orientado principalmente para a TV.

Pagando ainda o custo do endividamento estimulado durante o regime militar por Delfim Netto, ex-czar da economia, o Estado de S.Paulo foi obrigado a iniciar a série de sacrifícios promovendo violentos cortes no número de páginas e no seu quadro de jornalistas (ver, neste Observatório, “Quem matou o ‘Sabático’?”, “A montanha pariu um rato”, “Sem tempo para a leitura?”, “Cabeças de papel” e “Uma equação da crise”).

Os demais jornalões e revistões não perderam tempo: aproveitaram o enxugamento do rival para compactar suas edições e nivelar por baixo. Desistiram de concorrer: ao invés de investir em qualidade (como exige nas demais indústrias) a mídia preferiu desinvestir. Dois meses depois, a partir do dia 3 de junho, Folha de S.Paulo, Valor, Rede Record e Editora Abril também anunciaram fortes cortes de papel, cadernos e pessoal.

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Perguntas que não se calam

Se a justificativa desse banho de sangue é efetivamente o direcionamento das verbas publicitárias para a TV, algumas questões precisam ser esclarecidas com urgência. Caso contrário a imprensa estará abdicando formalmente do seu papel de defensora do interesse público.

** Esta valorização da TV foi repentina?

** Os exageros da cadernização (que agora se pretende corrigir) não foram pressentidos quando os jornalões refizeram o seu visual a partir de outubro de 2004?

** Se a vilã no Brasil ainda não é a internet, por que razão vem sendo insistentemente apontada como a grande predadora da mídia impressa?

** Diminuído e constrangido por essa sucessão de agressões, como preservar intactas as vantagens competitivas do jornalismo impresso no momento em que as mídias digitais se converterem em real ameaça?

** Como explicar o desânimo e a inapetência das empresas jornalísticas “puras” (que não operam no ramo da TV) diante da suposta ameaça televisiva? Esqueceram suas vitórias anteriores (a partir de 1973)? Não percebem as limitações do meio televisivo como veículo de um jornalismo intensivo?

** As entidades corporativas da mídia impressa (ANJ e ANER) tentaram demonstrar aos anunciantes que o altíssimo custo de veiculação de um comercial associado à sua incapacidade para atingir públicos segmentados torna a televisão imprópria para uma vasta gama de produtos e serviços?

** As agências de publicidade não estão atentas às alterações do mercado, não perceberam que ao assistir passivamente à asfixia da mídia impressa também serão obrigadas a cortar e reduzir despesas?

** Considerando o caráter de vilã da mídia impressa, por que razão insistem os jornais em dar apoio maciço a atrações essencialmente televisivas – como telenovelas, reality shows, sitcoms, lutas marciais?

** Diante do fenômeno da imprensa popular nas principais cidades do país, por que razão não se procuram novos nichos para atender a um público que deseja ascender?

** Considerando a crescente preocupação dos leitores com questões locais (violência, educação, transporte) e a incapacidade dos jornalões em satisfazer essa demanda, por que não se investe mais na imprensa local e comunitária tal como sugere o megainvestidor Warren Buffet? O que é bom para os EUA deixou de ser bom para o Brasil?

** Se a educação de qualidade e a formação de quadros competentes tornou-se prioridade nacional, esse repentino esvaziamento da imprensa não representa uma ação em sentido contrário?