Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Responsabilidade compartilhada

Após o confronto entre policias e manifestantes na última terça (11/06) na cidade de São Paulo, quem acompanhou a cobertura realizada pelos dois principais jornais da cidade já sabia que o pior ainda estava por vir. Na quinta (13/06), quando uma manifestação certamente maior estava marcada para acontecer, tanto O Estado de S. Paulo quanto a Folha de S.Paulo publicavam editoriais fortíssimos que exigiam ações ainda mais enérgicas da Polícia Militar.

O Estado de S. Paulo:

“No terceiro dia de protesto contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos, os baderneiros que o promovem ultrapassaram, ontem, todos os limites e, daqui para a frente, ou as autoridades determinam que a polícia aja com maior rigor do que vem fazendo ou a capital paulista ficará entregue à desordem, o que é inaceitável. (…) A reação do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad – este apesar de algumas reticências – à fúria e ao comportamento irresponsável dos manifestantes indica que, finalmente, eles se dispõem a endurecer o jogo.”

Folha de S.Paulo:

“O direito de manifestação é sagrado, mas não está acima da liberdade de ir e vir – menos ainda quando o primeiro é reclamado por poucos milhares de manifestantes e a segunda é negada a milhões. (…) É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais.”

Bala de borracha

O que se viu na manifestação de quinta-feira (13/6), portanto, não foi surpresa para ninguém. A polícia, sobre os ombros dos editoriais paulistanos e do governador Geraldo Alckmin, agrediu qualquer um que passasse à sua frente. Jovens e idosos, manifestantes e jornalistas, todos foram vítimas de uma violência desmedida e injustificada.

Dentre as centenas de feridos, os casos mais graves estão localizados entre os jornalistas que cobriam o protesto. O fotógrafo Sérgio Silva, da agência Futura Press, foi atingido por uma bala de borracha na região do olho esquerdo e tem chances remotas de recuperar a visão. A repórter da Folha Giuliana Vallone também foi atingida na região do olho, mas, apesar de mais de uma dúzia de pontos, passa bem.

Em matéria publicada pela Folha no dia seguinte, que relata as agressões sofridas por seus profissionais, lê-se que o jornal “(…) divulgou nota em que repudia a violência e protesta contra a falta de discernimento da Polícia Militar no episódio”.O corte na carne foi sentido.

Premonições

Na quinta-feira (13), muitas horas antes dos manifestantes começarem a se reunir, o colunista Janio de Freitas escreveu em sua coluna da Folha:

“Aqui ou fora, as manifestações são sempre as mesmas, com dificuldade de variação maior. E as polícias são sempre as mesmas na estupidez inútil da sua violência armada e da irracionalidade. Logo, os oportunistas estarão sempre prontos, entre os manifestantes, para entrar em ação. E quem lhes dá a oportunidade é sempre a polícia.”

Dado o tamanho dos confrontos e sua afirmação quase premonitiva, ele retomou o tema neste domingo (16/6):

“A volta de manifestações na semana entrante é mais provável do que uma solução para os protestos. Perspectiva idêntica fez aparecer na manhã de quinta-feira, nesta coluna, um trecho assim: ‘Quem lhes dá [aos oportunistas da arruaça] a oportunidade é sempre a polícia. As bombas de gás, os tiros, os cassetetes incitam as respostas desafiadoras: é a hora dos arruaceiros.’ À noite isso se confirmava, com reconhecimento até dos que afirmavam o oposto. É o que tende a ser visto outra vez, se as ordens dos mandantes da violência inicial não as retirarem. Ou até que haja morte. Com decorrências imprevisíveis.”

No sábado (15/6), diante dos fatos, a Folha viu-se obrigada a mudar de posição em seu editorial:

“No quarto protesto, a responsável maior pela violência passou a ser a própria PM. Pessoas sem envolvimento no confronto foram vítimas da brutalidade policial. Transeuntes, funcionários do comércio, manifestantes pacíficos e até frequentadores de bar foram atacados com cassetetes e bombas. (…) De promotores da paz pública, policiais transformaram-se em agentes do caos e da truculência que lhes cabia reprimir, dentro da lei, da legitimidade e da razão.”

Em sua segunda coluna, Janio não precisou fazer nenhuma premonição, apenas leu o editorial do jornal em que trabalha.

Culpados

Antes de receber alta na tarde de sábado (15/06)), Giuliana Vallone foi entrevistada pelo TV Folha, braço do jornal em que ela própria trabalha. De funcionária, passou a notícia. Relatou que viu o policial mirar em seu rosto, mas jamais pensou que ele fosse atirar. Pois ele atirou, e teve apoio para tal. Para livrar-se da mão pesada e autoritária de seu editorial, o jornal valeu-se do corporativismo de seus profissionais para arregimentar uma funcionária em prol de sua boa imagem. A Folha assim tenta se redimir com a opinião pública ao mesmo tempo em que cria uma mártir para a democracia e a liberdade de imprensa no país. Feitos por várias mãos, os veículos de imprensa são um ambiente pluralista por natureza, mas é preciso que seus profissionais levem em consideração que existe um chefe na cadeia de comando e que, se existe alguma divergência de opinião, a que predominará será sempre a dele.

Apesar do que o ódio e a indignação que a repórter Giuliana Vallone possa sentir pelo policial que atirou nela, ou mesmo da corporação que o abriga, é preciso que ela não se esqueça de que muitas vezes os incentivadores do ódio estão sob o mesmo teto que ela e que seus editorias podem ter consequências devastadoras.

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Carlos Oliveira é escritor, São Paulo, SP