Como pode uma agência de vigilância estar sujeita à variação de humor de um nerdzinho qualquer? Causou furor o vazamento da notícia de que a NSA, Agência Nacional de Segurança dos EUA, seria capaz de monitorar ligações e conteúdos de grandes serviços da internet. A denúncia vinha de Edward Snowden, ex-administrador de segurança da agência, que abandonou seu posto e fugiu para Hong Kong, de onde contatou a imprensa com documentos secretos.
Parece filme ruim? Calma que piora. No hotel, os jornalistas deveriam ir para um canto e perguntar pelo caminho em voz alta. Ele se revelaria segurando um cubo Rubik. Sério? Sério.
O ministério do bom-senso adverte: Dan Brown e Robert Ludlum em excesso não fazem bem. Por que fugir para Hong Kong? A cidade-Estado pode ter diferenças com a China, mas não é a Venezuela. Ele estaria filiado a alguma rede? Provavelmente não. Seu patriotismo caubói parece mais Forrest Gump do que Julien Assange. A época da denúncia não poderia ser pior: justo quando o presidente da China está nos EUA respondendo sobre ciberataques. Não custa nada entregá-lo.
Aos 29 anos, Snowden não era um profissional de alto nível. Estudante medíocre, entrou na NSA como guardinha e subiu na carreira se aproveitando da onda de contratações que sucedeu o 11 de setembro. Como Bradley Manning, que revelou documentos para o WikiLeaks, ele é fruto de uma época em que patriotismo e discursos comerciais se misturam, alterando a percepção da realidade.
Vigilância é ferramenta de mão dupla
É curioso ver a Booz Allen, empresa terceirizada responsável por sua contratação, se indignar e demitir o desertor. Ou a saia justa em que entraram moderninhos, como Apple e Facebook, colocados no mesmo saco que AOL e Microsoft, negando envolvimento no caso. Ou a cara de pau do Google, que fez um escarcéu quando violaram a privacidade de seu serviço na China.
Se houve algum dano sério, ele foi para a NSA. Como pode uma agência de vigilância estar sujeita à variação de humor de um nerdzinho qualquer? Se fosse alguém mais nocivo, o problema poderia ter sido grave. De qualquer forma, a fragilidade foi exposta e não é tão ruim quanto soa. Não há como monitorar em tempo real tudo que é posto na rede, já que só o YouTube aumenta seu acervo em 100 horas de novos vídeos por minuto. Boa parte dos metadados recolhidos deverá servir como grupo de controle, para analisar padrões. Só se sabe o que é anormal quando se conhece o normal.
É claro que a questão da privacidade é séria, mas ela nunca existiu. Por que o choque, quando todos sabem que uma de suas maiores fontes de renda de redes sociais, como bancos e telefônicas, é o tráfico dos dados de seus usuários, na forma de hábitos de consumo e comportamento? Agora que todo blogueiro já se manifestou dá para analisar melhor a situação. Os EUA não são a China. Lá, pelo menos, há quem finja acreditar em instituições. Patrocinadores de lobbies e campanhas políticas, os milionários do Vale do Silício jamais colocariam suas vaquinhas leiteiras em risco.
O lado bom da ópera-bufa é perceber que estamos mesmo em uma cultura de transparência, em que a vigilância é ferramenta de mão dupla.
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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e colunista da Folha de S.Paulo; mantém o blog www.luli.com.br