Encontramos ao longo da vida muitas cópias, mas poucos originais. Um dos raríssimos exemplares da espécie que tive o prazer de conhecer foi Carlos Alberto Teixeira, o CAT, hoje repórter de tecnologia aqui do jornal. Ficamos amigos há muitas e muitas luas, ainda nos tempos da internet a vapor, e sempre admirei a forma inteiramente singular que ele tinha (e tem) de ver os fatos mais triviais da vida. CAT já pensava fora da caixa na época em que essa expressão nem existia; em consequência, sempre esteve vários passos à frente de todo mundo. No começo dos anos 90, por exemplo, já tinha chegado à conclusão de que a privacidade era algo relativo, e postava abertamente nos BBSs os seus dados completos, com endereço e telefone.
Uma vez perguntei se não ficava preocupado com isso. A resposta foi não – e é claro que tinha uma explicação lógica. Se alguma pessoa chata ou de má índole estivesse a fim de encontrá-lo, raciocinava o CAT, ela não teria qualquer dificuldade em fazê-lo. O mesmo não se podia dizer das criaturas de bem, muito menos versadas no rastreamento dos seus semelhantes. Por que deixar a vantagem competitiva com as pessoas nefastas? Ora, não é que fazia todo o sentido? A partir daquele momento, parei de me preocupar em relação à divulgação dos meus dados. Anos depois, cheguei a ter um stalker na porta durante alguns meses (um dia eu conto essa história) mas este, confirmando a intuição do CAT, tinha condições de descobrir até o CPF da minha avó.
Na outra ponta, tive um amigo que passou a vida sem pagar nada, nunca, com cheque ou cartão de crédito. Ele conhecia por dentro o sistema bancário, e sabia como a banda toca. Não que tivesse negócios escusos ou estivesse fugindo da polícia; apenas não se sentia confortável sabendo que cada movimento seu podia ser monitorado. Isso foi muito antes da internet virar assunto do cotidiano.
Troca de nome
Privacidade é um luxo recente, inventado no século passado, que continua indisponível para vasta parcela da Humanidade – aquela que divide um ou dois cômodos, se é que assim podemos chamá-los, com toda a família. Visitar uma favela indiana é uma experiência esclarecedora, que muda de vez a nossa forma de pensar sobre espaço, individualidade e, em última instância, liberdade. Não é à toa que um dos conceitos mais incompreensíveis para os indianos em geral é o da privacidade – e a Índia sequer é um estado policial como a China ou a Coreia do Norte, onde vizinhos espionam vizinhos 24 horas por dia.
Isso, é claro, não diminui o valor da privacidade. Antes pelo contrário.
Em meados dos anos 1990, um americano chamado Ted Kaczynski ficou famoso por mandar cartas-bomba para professores e cientistas, e por ter escrito um manifesto cuja publicação pelo “New York Times” e pelo “Washington Post” foi a condição que impôs para dar cabo dos seus atos de terrorismo. Nesse manifesto, ele alertava a humanidade para a erosão da liberdade causada pela tecnologia. Temia o controle do indivíduo pelo estado e pelo sistema, e o afastamento do homem da natureza, mergulhado num turbilhão terminal de consumismo.
Kaczynski era louco mas não era burro. Estudou em Harvard, obteve um PhD em matemática pela Universidade de Michigan e deu cursos de cálculo e de geometria na Universidade da Califórnia. Como escritor, apresentava tendência à verborragia e à redundância, mas suas ideias não eram inteiramente destituídas de mérito, tanto que seu manifesto mexeu profundamente com a turma da tecnologia. Eu mesma passei um bom tempo cismada com o que ele escreveu. Em 1996, Kaczynski, que matou três pessoas e feriu outras 23, foi preso e condenado à prisão perpétua.
Ele se tornou conhecido sob a alcunha de Unabomber.
Em fins dos anos 1990 e começo dos anos 2000, o FBI adotou um sistema de espionagem chamado Carnivore. Esse sistema fuçava a correspondência eletrônica dos cidadãos e causou um previsível auê on-line. A Electronic Frontier Foundation (eff.org), o Electronic Privacy Information Center (EPIC) e várias entidades de direitos civis reagiram e foram à Justiça contra a descarada invasão de privacidade.
Não deu em nada. O FBI apenas mudou o nome do software para DCS-1000 e só deixou de usá-lo quando bem entendeu, porque ele acabou ultrapassado. Cerca de US$ 10 milhões do contribuinte americano foram para o ralo, gastos num sistema que nem ao menos foi capaz de fazer o que se propunha – defender os mocinhos dos bandidos. Vide 2001.
Privacidade em xeque
O escândalo da espionagem ampla, geral e irrestrita da NSA só é um escândalo porque confirma o que todos já sabíamos – ou, no mínimo, imaginávamos. O governo dos Estados Unidos vigia com igual empenho americanos e estrangeiros. No entanto, o sucesso do esquema brutal da NSA é, como o do falecido Carnivore, discutível. Vide Boston.
Quando existe tecnologia que permite ao governo vigiar os cidadãos, é ingenuidade supor que ele não vai usá-la.
Dito tudo isso, para mim Edward Snowden é um Herói com H maiúsculo.
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Cora Rónai é colunista do Globo