É de fato correta a equação do presidente Barack Obama pela qual é impossível conciliar 100% de segurança com 100% de privacidade?
Foi esse o argumento usado para justificar o gigantesco esquema de espionagem legal adotado nos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.
Minha sensação é a de que, de fato, trata-se de uma combinação impossível. Ou se cede um pouco de segurança em nome do máximo de privacidade ou se cede algo de privacidade em nome da segurança (segurança, bem entendida, contra o terrorismo, já que a criminalidade comum não está no radar do esquema de espionagem).
O problema passa a ser, portanto, o quanto de privacidade é razoável ceder. Suspeito que a legislação norte-americana pós-11 de Setembro foi muito além do razoável.
Primeiro, há excesso de opacidade na supervisão dos supervisores. O editorial de ontem do “Financial Times” toca na tecla certa: “Esses poderes legais podem ser necessários para lidar com as contínuas ameaças terroristas que os Estados Unidos enfrentam –fato sublinhado pelos ataques a bomba em Boston [à maratona de Boston]. Mas, para reter a confiança do público, [os poderes] deveriam sempre ser exercidos de forma proporcional [à ameaça terrorista] e sujeitos a algumas checagens efetivas”.
Mesmo nos EUA, traumatizados pela ameaça terrorista, há quem não veja a menor proporção entre ela e o arsenal legal de espionagem. É o caso de Stephen M. Walt, professor de Relações Internacionais na Universidade Harvard, em seu blog na “Economist”:
Olhar para fora
“Terrorismo convencional –mesmo do tipo sofrido no 11 de Setembro– não é uma ameaça séria à economia norte-americana, ao modo americano de vida ou mesmo à segurança pessoal da esmagadora maioria dos americanos, porque a Al Qaeda e seus parentes não são nem poderosos ou preparados o suficiente para causar tanto dano quanto poderiam desejar”.
Walt vai ao extremo de acrescentar que os norte-americanos correm muito mais riscos com acidentes de automóvel ou mesmo na banheira do que com o terrorismo.
Se é assim, não se justifica o aparato de espionagem irrestrita agora revelado. Até porque o caso de Boston mostra a ineficácia do mecanismo: Tamerlan Tsarnaev, o mais velho dos irmãos acusados pelo crime, entrou e saiu do radar do FBI, o que demonstra que não houve a checagem de dados levantados pela espionagem.
Suspeito que o trauma do 11 de Setembro deixou os norte-americanos menos obsessivos com a privacidade, a ponto de aceitarem, rangendo os dentes, alguma violação a ela em troca de uma sensação superior de segurança.
Se é assim, explica-se uma reação relativamente moderada à invasão agora exposta. Talvez porque o esquema de espionagem de dados estava voltado para fora dos EUA, ao menos na versão do governo.
Significa que você, brasileiro distraído, pode ter tido suas comunicações vasculhadas e, pior, nem tem em quem se vingar porque não vota nos Estados Unidos.
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Clóvis Rossi é colunista da Folha de S.Paulo