Não faz nem um ano da nossa última lista de palavras cujo significado evolui na marcha inexorável dos acontecimentos e cá estou com mais uma fornada semântica.
Se antes bastava um Aurélio ou um Houaiss, agora precisamos proceder com cuidado porque, num mundo em que a ironia substituiu a simples cognição, todo o cuidado é pouco para não escorregar na casca de banana do falso contexto. Se a ironia contamina o discurso e suspende a credibilidade das palavras e expressões, é mais fácil manipular seu sentido?
Temo que o riso sarcástico e a desconfiança automática da mais prosaica elocução tenha nos anestesiado para a desconfiança necessária e saudável. A que nos defende da demagogia autoritária. Nas duas últimas semanas, quando um governo que chegou para restaurar o respeito às liberdades constitucionais se mostrou capaz de invadir cada recanto da nossa comunicação privada, as palavras passaram por novos testes de resistência.
>> Homem não mediado (unmediated man) – Pessoa que não pede licença a instituições para denunciar o que considera violações da Constituição. Edward Snowden foi acusado de carecer desta mediação pelo colunista David Brooks, do New York Times. Traidor ou herói, dependendo da sua turma, Snowden fugiu para Hong Kong, com um pen drive que continha a galáxia do acesso de informação sobre a vigilância do governo federal. David Brooks ocupa a vaga para o conservador moderado no sistema de cotas ideológicas da mídia americana. Deste privilegiado poleiro, ele lamenta a decadência de virtudes que, ou não existiam, ou nada têm a ver com os fatos da semana, mas servem de bordão para sermões.
>> Metadata – Dados sobre a enxurrada de dados. Os guardiões da metadata não entendem bulhufas sobre ela ou o que fazer com tanta informação. Por isso, contratam o primeiro nerd e lhe conferem acesso a informações classificadas em nome da segurança nacional. O ex-adolescente esquistão que se preocupava com acne e hoje não consegue olhar ninguém nos olhos, graças a seu acesso à metadata, pode destruir sua reputação.
>> Privacidade 1 – Um ecossistema que o Museu de História Natural de Nova York tenta, sem sucesso, reproduzir e preservar. 2 – Uma aspiração bolorenta de cidadãos com mais de 40 anos. 3 – O nome de um novo resort temático em St.Barts.
>> Dar boas-vindas a um debate – Algo que o um presidente diz quando é apanhado com a boca na botija, quer dizer, quando um funcionário de baixo escalão vaza o programa de espionagem federal.
>> Menos não verdadeira – Sério. Resposta “menos não verdadeira” foi a que o diretor nacional de inteligência James Clapper afirmou ter dado ao Comitê de Inteligência do Senado quando lhe perguntaram em março: o governo americano coleta dados sobre centenas de milhões de americanos? A resposta foi: “Não deliberadamente”.
>> Deliberadamente – O que o governo federal americano faz sem querer.
>> Intrusão modesta (modest encroachment) – Privilégio de um presidente do Partido Democrata. Exemplo: o republicano George W. Bush invadia nossa privacidade e violava nossos direitos civis sem pedir desculpas. Barack Obama faz o mesmo com um ar compungido e com passe livre dos ex-indignados com o governo anterior.
>> Sensacionalismo – Jornalismo não praticado apenas pelos tabloides. (Como se a referência ao formato fizesse algum sentido para leitores de menos de 30 anos.) Exemplo: sensacionalista é a reportagem que invade a vida privada de uma figura cuja vida profissional originou a notícia. Se o personagem não tem status social, político ou econômico, vale tudo, o que justifica o espetáculo de venerandos colunistas fazendo pseudos diagnósticos sobre a personalidade de Edward Snowden e babando sobre as fotos de sua namorada.
>> Armas químicas – Arsenal cujo uso provoca choque depois de meses de denúncias na Europa sobre o uso de dito arsenal. A vantagem crescente do Irã no guerra civil e no genocídio da Síria provoca súbita compaixão em Washington pelas vítimas do gás sarin.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York