Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Formação igual, princípios éticos diferentes

O filme O Quarto Poder, de Costa-Gavras, nos mostra a história de Max Brackett, um jornalista em fase decadente que está disposto a tudo para voltar aos grandes canais de TV de Nova York. Trabalhando há dois anos em uma emissora interiorana, Brackett visualiza na fraqueza emocional de Sam Baily a matéria perfeita para fazê-lo voltar aos holofotes. Sam Baily é funcionário de um museu e foi demitido devido a um corte de custos do local. Na tentativa desesperada de fazer com que sua chefa o ouça, Sam entra no museu armado com uma espingarda e dinamite afim apenas de intimidá-la. Neste mesmo momento, Max, que estava cobrindo apenas uma matéria trivial do museu, começou a reportar na íntegra através de um telefone que estava no banheiro. Max deu dimensões muito maiores à situação em si. O que seria apenas uma abordagem mais enérgica transformou-se em um sequestro qualificado, com direito a crianças reféns e um rapaz ferido por uma bala perdida.

O título do filme por si só já nos remete a uma análise do papel da mídia no manuseio da informação. “O quarto poder” seria capaz de mudar a realidade das coisas através da disseminação e afirmação de um ponto de vista específico. Tratar-se-ia de um tipo de autoridade que está à parte da lei e das convenções sociais, uma vez que pode manipular o fato da maneira como achar conveniente. Muitas vezes vende-se uma realidade aquém do que realmente se trata, e isso esbarra na questão ética do profissional da comunicação. No filme acontece uma mistura de papéis: o jornalista, que trabalha para a emissora de TV, precisa fazer uma descrição da situação de modo que o interesse do público seja sanado. Ele trabalha para informar o telespectador. O que acontece é que, em determinado momento do filme, o jornalista passa a atuar como “guardião da imagem” de Sam. Brackett dá dicas sobre como se portar perante as câmeras, o que responder aos jornalistas e de que forma ele deveria agir para conseguir uma punição não tão severa uma vez que resolvesse se entregar. No papel de representante daquela pessoa, Brackett assume o posto de assessor de imprensa.

Assessor preserva imagem de quem o contrata

A questão ética do assessor de imprensa esbarra em vários pontos à do jornalista, sendo a principal delas o conflito de interesses. Ainda há muitas dúvidas por parte da população (e, por que não dizer, dos próprios comunicadores sociais?) sobre a distinção entre as duas profissões. Afinal, qual a atividade que um assessor de imprensa desempenha que compete somente a ele, e não à um jornalista? Em palestra organizada pela Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) no Primeiro Seminário Nacional de ética no jornalismo, as duas profissões são definidas de acordo com a figura que defendem e seu público-alvo: “A profissão de jornalista tem como cliente o cidadão, o leitor, o telespectador. Nesse sentido, o jornalista se obriga – em virtude da qualidade do trabalho que vai oferecer – a ouvir, por exemplo, lados distintos que tenham participação numa mesma história. Já o objetivo do assessor de imprensa é cultivar e difundir a boa imagem daquele que o contrata. Para isso, ele não mentirá – é evidente que não, compromisso com a verdade também faz parte da ética do assessor de imprensa, ele não tapeará a opinião pública, não cometerá nenhuma indignidade –, mas dará mais realce ao que interessa ao seu cliente.” Ainda na mesma ocasião, se afirma: “Muitos alegam que o jornalista também trabalha para um patrão, o que é verdade. Só que o patrão não é o seu cliente. É fundamental que o cliente de ambos, patrão e jornalista, acredite que eles buscam a verdade.”

O viés da palestra toma um rumo mais polêmico ainda ao discutir o exercício das duas profissões ao mesmo tempo. Poderia um jornalista trabalhar como repórter em um jornal impresso e como assessor do partido político X sem que perdesse a imparcialidade ao noticiar ou sem mesmo ser afetado por influências externas? Explico: poderia ele fazer uma investigação no partido Y sem que suas intenções não despertassem a dúvida no leitor (e assim, a queda de credibilidade)? Segundo o código de ética do jornalista, isso seria possível. O inadmissível seria este mesmo repórter valer-se de sua posição como autoridade da notícia e fazer uma matéria sobre o próprio partido. Essa matéria tomaria um cunho institucional, ferindo assim a ética jornalística de noticiar baseando-se em todas as opiniões. Levando em consideração o acato aos diversos pontos de vista, a regra do código de ética jornalístico que a defende não valeria, por exemplo, ao jornalista que trabalha como assessor de imprensa, por um motivo simples: o assessor trabalha a notícia tomando o cuidado para preservar a imagem daquele que o contrata. Trata-se de um cuidado individual. Seria descabível que, em meio a uma crise corporativa, o assessor levasse em conta a opinião da assessoria da empresa concorrente para produzir um release.

Enxergar nas entrelinhas

Apesar da liberdade dos veículos, a comunicação segue atrelada à um modelo corporativo de execução. Todos os veículos midiáticos constituem-se empresa, e sendo empresa, todos visam o lucro. Portanto, há divergências quando se afirma que o patrão e o jornalista trabalham para o cliente, que ambos visam à crença na verdade. Muitas vezes matérias de interesse público são derrubadas pelo chefe para dar espaço aos anúncios. Em outras, surgem reportagens fúteis para suprir o interesse do público, que difere em muito do interesse público. Prima-se pela vendagem de jornais, que por sua vez fomenta a publicidade, traz verba para o jornal e assim recomeça o ciclo. Como no filme, o interesse do personagem em transformar a matéria em um show foi unicamente pensando na repercussão do fato e na consequência que isso traria: o tornaria um profissional cobiçado pelos grandes canais de TV, uma vez que traria grandes índices de audiência à sua emissora.

No final, o que se viu na história foi uma reviravolta total no foco noticioso. As emissoras concorrentes fizeram uma reportagem baseada na atitude de Brackett ao tentar ajudar Sam a recuperar sua imagem perante o público. Poderia um jornalista fazer a cobertura do sequestro e ao mesmo tempo ajudar o criminoso a se promover perante a sociedade? A atitude dúbia do profissional colocou em jogo sua credibilidade, fazendo-o criador de uma realidade única, que pouco condizia com o que realmente estava acontecendo. Desde o começo, Brackett criou seu circo particular tomando o cuidado de manipular as peças certas de um jogo que envolvia a opinião pública, a justiça e o poder da comunicação. A intenção dele era ter um desfecho sensacional, onde o culpado se redimia publicamente, conquistava o apreço do público e talvez fosse perdoado legalmente pelo seu ato, criando uma exceção no sistema penal que poderia, mais tarde, dar lugar à mais polêmica.

Sabemos que o sensacionalismo e a apelação são fatores infelizmente quase intrínsecos ao jornalismo de hoje. A desgraça e as tragédias geram polêmica, discussão. Essa curiosidade “mórbida” é natural do ser humano. Tudo que abala as estruturas ou que foge do cotidiano é motivo de preocupação. O que acontece é que muitas vezes o vento que sopra no campo transforma-se em um tornado devastador através das versões daquele que o relata. A ética de cada profissão deve compreender os seus objetivos, levar em consideração as atividades que se desempenham e a maneira como elas são desempenhadas. Aos assessores cabe uma determinada postura, aos jornalistas que trabalham em veículos de comunicação, outra. O bom senso deve predominar em ambas as profissões de acordo com o que se propõem a fazer. É importante lembrar que, institucionalmente falando ou não, o profissional está manipulando o acontecimento. Aqueles que criam um mundo paralelo com a informação devem estar preparados para o confronto de realidades particulares. Por mais que a dissimulação convença, haverá sempre quem enxergue nas entrelinhas.

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Jéssica Pedroso é jornalista, São Leopoldo, RS