Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As invasões oportunistas

A manchete de quarta-feira (19/6) da Folha de S. Paulo tenta uma síntese dos acontecimentos da noite anterior, que começou com uma manifestação pacífica e terminou em depredações e saques: “Ato em SP tem ataque à Prefeitura, saque e vandalismo; PM tarda a agir”. O texto é mais preciso do que a manchete de seu principal concorrente, o Estado de S. Paulo, cujo enunciado não define os acontecimentos da jornada: “SP tem noite de caos, com ataque à Prefeitura e onda de saques”.

A diferença principal entre os dois jornais é que o Estado ignorou o fato relevante de que a Tropa de Choque demorou três horas para se mobilizar, quando um grupo de cerca de uma centena de pessoas já havia invadido, saqueado e depredado lojas e uma agência bancária e ameaçava incendiar um prédio que abriga provisoriamente famílias sem moradia.

Esse é um detalhe fundamental para entender como agem as duas principais forças políticas que tentam amenizar suas perdas proporcionais em meio à crise, representadas pelo PT e o PSDB. A Folha propõe um pouco mais de complexidade à análise da questão tática da segurança pública, o Estado prefere poupar a força policial, e com isso proteger a imagem do governador.

A Folha dá destaque para a justificativa da Secretaria de Segurança, ao anotar, desde a primeira página, que o governador não tomou a iniciativa de liberar a Tropa de Choque do seu confinamento logo após a tentativa de invasão da sede da Prefeitura, no fim da tarde, porque os próprios líderes da manifestação e o pequeno contingente de guardas municipais estariam conseguindo controlar o grupo radical. No entanto, não se pode descartar que tenha havido um cálculo frio e estratégico por parte do governador ao retardar a ação da polícia, como resposta às críticas recebidas por conta da violência da Tropa de Choque em manifestações anteriores.

A cobertura ao vivo da televisão mostrava que os líderes perderam temporariamente o controle do grupo que rompeu o isolamento e atacou os guardas municipais, mas também era real a possibilidade de um confronto entre os vândalos e a maioria pacifista degenerar em tragédia: no momento em que os líderes do movimento recolocavam no lugar as grades que mantinham a multidão a uma distância segura da entrada do prédio, uma dezena de mascarados tentava tomá-las para com elas atacar as portas de vidro. No momento de maior tensão, um dos vândalos usou um lança-chamas contra um dos jovens que tentavam detê-los.

O discurso partidário

Os jornais se esforçam para enquadrar os eventos nos paradigmas tradicionais de análise da agitação social. No coquetel de opiniões sobre a natureza dos protestos, destaque para declarações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que, da altura relativa de seus 82 anos, aproveitou sua festa de aniversário e a comemoração dos 25 anos de fundação do PSDB para levantar a bandeira que seu partido vai agitar na campanha de 2014: para ele, a causa das manifestações é uma suposta situação de carestia que estaria castigando a sociedade brasileira.

Ora, não há um traço de realidade nos indicadores econômicos que venha a autorizar o ex-presidente a afirmar que o Brasil afunda na inflação ou que qualquer coisa parecida com carestia esteja angustiando a população.

Interessante observar que o Estado de S. Paulo publicou a declaração de Fernando Henrique na seção de Política, um lugar mais adequado para expressões de interesse partidário, enquanto a Folha e o Globo a inseriram em meio ao noticiário sobre os protestos.

Lidas em seu contexto próprio, ou seja, no meio de declarações que explicitam o debate democrático entre agremiações políticas, as palavras do ex-presidente se diluem na relatividade da retórica específica; lidas no noticiário sobre as manifestações que inquietam a sociedade, soam irresponsavelmente oportunistas.

Também são oportunistas as ações dos vândalos que se intitulam anarquistas, que se apropriam de manifestações legítimas para praticar seu esporte destrutivo. No entanto, é preciso observar que o anarquismo é um sintoma que tanto pode indicar imaturidade quanto senilidade do pensamento esquerdista clássico: montado sobre a ignorância, manifesta a incapacidade de lidar com as angústias naturais do processo civilizatório; saturado de teoria, revela-se como uma capitulação diante das dificuldades da realização de utopias.

Por fim, registre-se uma terceira invasão de vírus oportunísticos no palco dos jovens rebeldes: aproveitando-se da distração provocada pelos protestos nas grandes cidades, o deputado e pastor Marco Feliciano fez aprovar na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados uma proposta que admite a possibilidade de tratamento para a homossexualidade.

Assim, a assombração do arcaísmo invade o espetáculo vanguardista dos avatares que saem das redes digitais para a vida real.

“Do Facebook para as ruas”, dizia um cartaz exibido por manifestante em São Paulo.

“Da Idade Média para a contemporaneidade”, responde Feliciano.