Morreu mais um policial no Rio de Janeiro. O governador carioca brada em tom retumbante:
– Queremos o exército na rua!
A mídia faz eco e o presidente da República responde altissonante:
– Se o exército for requisitado, atenderemos o pedido.
A mídia novamente faz eco. Ecoam também as alegações do ministro da Justiça de que a função do exército é outra.
Com exército na rua ou sem ele, o problema do Rio de Janeiro continuará sendo o mesmo: degradação urbana e existência de áreas que podem ser denominadas terrea incognitae.
Segundo Jean-Christophe Ruffin, O império e os novos bárbaros, os romanos designavam pelo termo terrea incognitae as terras fora do império porque os bárbaros eram incontáveis, porque não se sabia exatamente o que ocorria nelas e, principalmente, porque, além da fronteira a autoridade imperial, era inexistente. Segundo o autor francês, o conflito Norte/Sul existe porque o processo de degradação da autoridade estatal está ocorrendo atualmente na África. Vários Estados do continente negro entraram em colapso e o Ocidente não tem mais contato com extensas faixas territoriais.
Omissão do Estado
Ainda segundo Ruffin, o conflito Norte-Sul também se caracteriza pela existência do que ele chama de ‘arquipélago da miséria’. O destaque aqui vai para a situação caótica das metrópoles do Sul, cuja penúria é agravada em razão de se constituírem pólos de atração para as populações de regiões mais miseráveis ainda. Este é o caso, por exemplo, da Cidade do México e do Rio de Janeiro.
Ninguém precisa ser um especialista em questões públicas para perceber que o autor francês está coberto de razão. O processo de degradação urbano na cidade do Rio de Janeiro permitiu a criação de enclaves populacionais em que a presença do Estado é inexistente e indesejada. A falência do poder estatal ficou evidente quando autoridades cariocas praticamente proibiram que helicópteros sobrevoassem o espaço aéreo das favelas em baixa altitude porque as aeronaves poderiam ser abatidas.
Como o Estado já reconheceu que não tem controle territorial e aéreo nas favelas, as mesmas estão fora da República. Por omissão federal, estadual e municipal, algumas favelas cariocas se tornaram terrea incognitae.
O monstro e a mídia
A única maneira de recuperar a autoridade dentro das favelas é realizar um amplo plano de reurbanização das áreas degradadas. Enquanto elas continuarem a ser enclaves em que a criminalidade (traficantes e milícias) manda e desmanda, não haverá esperança de redução da violência. Enquanto as favelas forem terrea incogniteae em prejuízo de milhares de brasileiros que pagam impostos – mas residem fora da República – toda a sociedade carioca terá que pagar o preço pela estupidez administrativa de prefeitos, governadores e presidentes.
– Mais polícia, mais exército – bradam os governantes.
A imprensa faz eco. O eco da mídia, neste caso, é mais nocivo do que qualquer outra coisa. Em razão de ecoar soluções paliativas e que, certamente, estão fadadas ao fracasso, a imprensa faz a população acreditar que os políticos estão preocupados ou fazendo a coisa certa (quando é mais do que certo que estão só a fazer e a repetir as mesmas cagadas).
A imprevidência administrativa dos governantes municipais, estaduais e federais produziu o monstro que a mídia alimenta através de seu eco:
– Mais polícia, mais exército…
Hora de Nêmesis
Nunca o eco da imprensa em relação à utilização do exército no Rio fez tanta justiça à mitologia. Eco amava os bosques e os montes, onde muito se distraía. Era querida por Diana a quem acompanhava em suas caçadas. Tinha, no entanto, um defeito: falava demais e sempre queria dar a última palavra em qualquer conversa ou discussão. Em certa ocasião, a deusa Hera desconfiou, com razão, que seu marido Zeus se divertia com as ninfas. Enquanto as ninfas se escondiam de Hera, Eco tentou distraí-la com uma conversa e, no entanto, foi castigada: só seria capaz de falar repetindo o que os outros dissessem.
É realmente lamentável ver o que Eco está a fazer no Rio de Janeiro. Nêmesis, certamente, acabará intervindo para corrigir as distorções administrativas, sociais e jornalísticas que criaram e alimentam a violência no Rio de Janeiro . Quando celebridades e governantes começarem a tombar, quem sabe alguma coisa seja feita.
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Advogado, Osasco, SP