Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os inimigos de Hitler

De todos os bilhões de folhas de papel jornal gastas ao longo da história para tratar de Adolf Hitler, as primeiríssimas saíram da gráfica de um jornalzinho chamado “Münchener Post”.

Numa sexta-feira de maio de 1920, uma nota da seção “Assuntos de Munique” registrava: “Uma espécie de partido, que ainda anda de fraldas e aparenta ter saúde bem fraca, vem aparecendo às vezes em público, sob o nome de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães’. Na terça-feira à noite, um senhor chamado Hitler falou sobre o programa desse partido’“.

A reportagem informava que o tal senhor “pregou o antissemitismo nos moldes nacionalistas”.

Mais do que pioneiro em farejar que era preciso ficar de olho no rapaz de bigode curto e fala inflamada, o “Post” converteu-se logo em seu mais encarniçado inimigo na imprensa alemã.

Num livro importante sobre o fenômeno nazista, “Para Entender Hitler” (Record, 2002), o jornalista norte-americano Ron Rosenbaum opina: “A batalha travada entre Hitler e os corajosos repórteres do Post’ é um dos grandes dramas nunca relatados da história do jornalismo”.

Uma jornalista brasileira radicada na Alemanha desde 1991 resolveu a questão. Em “A Cozinha Venenosa – Um Jornal Contra Hitler”, livro que acaba de ser lançado aqui, Silvia Bittencourt, 49, conta pela primeira vez a história.

Fruto de três anos de trabalho, o volume, lançado pela editora Três Estrelas (do Grupo Folha), conta em minúcias as batalhas, que transcenderam as palavras, entre o diário e os nazistas.

Segundo Bittencourt, e a julgar pelo que relata Rosenbaum, não há nem na Alemanha livros sobre o “Post”.

“Aqui ninguém conhece o ‘Münchener Post’, nem mesmo os políticos sociais-democratas atuais”, diz a autora, em referência ao partido político alemão que criou o jornal, no final dos anos 1880.

Ascensão

A pesquisa de Bittencourt se desenvolveu em especial em arquivos e bibliotecas de Munique, cidade na qual o austríaco Adolf (1889-1945) se estabeleceu em 1913.

Depois de ter lutado na Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, o até então artista frustrado encontra nos fundos de uma cervejaria no centro da cidade, em 1919, uma reunião de um pequeno partido trabalhador, onde começaria sua trajetória.

“De um desocupado, sem formação ou profissão alguma, Hitler se tornou, em poucos meses, uma estrela em Munique”, diz Bittencourt.

Ao contar a trajetória do “Münchener Post”, ela narra em detalhes a ascensão de Hitler e do partido, que saltou dos 200 filiados do final de 1919 aos 4 milhões de membros em 30 de janeiro de 1933, quando Hitler foi nomeado chanceler alemão.

O “Post” não duraria então mais do que 40 dias. Embora já tivesse sobrevivido a incontáveis atentados nazistas, o de 9 de março foi o final.

“Destroçaram os equipamentos de produção do jornal, como os linotipos. Colocaram barras de ferro nas engrenagens das prensas rotativas, a fim de impedir que elas voltassem a ser usadas, e lançaram os grandes barris de tinta de impressão sobre as calçadas”, relata a autora.

O pequeno grupo de jornalistas que produzia o diário, que à época tinha dez páginas diárias e modestos 15 mil exemplares, não estava na Redação. Quase todos escaparam, um deles cruzando os Alpes a pé. Outros não tiveram a mesma sorte.

O editor de cultura, Julius Zerfass, foi um dos primeiros encarcerados no campo de concentração de Dachau, do qual seria solto no fim do ano.

“A Cozinha Venenosa”, título do livro, era a maneira pela qual Hitler se referia ao jornal. No glossário do ditador, “veneno” era um termo usado para o mais abominável.

O jornal retribuía chamando o nazista de “arremessador piolhento de lama” ou classificando seu partido, já em 1923, como “o bacilo venenoso mais perigoso que o corpo do povo vem carregando consigo”. Como diz Rosenbaum, se houve alguém na história que pode dizer “eu avisei” foram os repórteres do “Post”, primeiros “a tentar alertar o mundo para a natureza da besta feroz que rastejava em direção a Berlim”.

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‘Münchener Post’ foi primeiro a tratar da ‘solução final’ dos judeus, diz autora

Principal opositor de Hitler na imprensa alemã dos anos 1920 e início dos anos 1930, o jornal “Münchener Post” nunca havia sido tema de um livro, antes do lançamento de “Cozinha Venenosa” (editora Três Estrelas), de Silvia Bittencourt.

Leia a seguir entrevista com a jornalista brasileira, radicada na Alemanha. (C.E.M.)

De onde veio a ideia de pesquisar a trajetória do “Münchener Post”?

Silvia Bittencourt – Minha primeira inspiração foi o livro de Ron Rosenbaum “Para Entender Hitler”. Ele apresenta todas as teses já difundidas sobre as origens do mal em Hitler. E ele dedica um capítulo aos repórteres do “Münchener Post”. Eles foram os primeiros a questionar as intenções de Hitler, os primeiros a advertir as autoridades sobre os perigos que ele representava e, finalmente, os primeiros a tentar explicar aquele que pouco mais de dez anos depois viria a implantar a mais sórdida ditadura até hoje conhecida.

Por que acredita que um tema como este nunca tenha sido abordado em livros na própria Alemanha ou em outros países?

S.B. – Apesar de tradicional em Munique, o “Post” era um jornal pequeno, local, que sempre viveu dos poucos assinantes que tinha. Além disso, era um jornal social-democrata, de esquerda, circulando no Estado mais conservador da Alemanha, a Baviera. Então, por mais que ele gritasse e denunciasse os escândalos, ninguém dava ouvidos. Além disso, em vários momentos o jornal beirava o sensacionalismo. Creio que os historiadores alemães não acharam importante divulgar a história de um órgão que ficava apenas dando murro em ponta de faca.

Como foi a pesquisa para escrever “Cozinha Venenosa”?

S.B. – Da ideia ao lançamento do livro se passaram três anos. Eu vivo em Heidelberg, no sudoeste da Alemanha, onde nos primeiros meses me dediquei à leitura de vários livros sobre Hitler e os anos 20 no país. Durante meio ano, viajei quase toda semana para Munique, onde passava uns três dias dentro dos arquivos e bibliotecas. Lá estão os microfilmes com a coleção, quase que completa, do “Münchener Post”. Na maior parte do tempo, estava sozinha dentro de alguma sala escura de arquivo, lendo aqueles textos com letras góticas do Post. Só interrompia este trabalho para fazer entrevistas com historiadores ou com os parentes dos jornalistas. O contato com os parentes _ cinco, no total _ foi muito especial. Por um lado, eles sabiam pouco do passado dos avós e bisavós junto ao “Post”. Uma vez ou outra, eu também passeava por Munique para ver os lugares por onde andavam os protagonistas da minha história, as redações dos principais jornais da cidade, as praças onde aconteciam as grandes manifestações e, obviamente, as cervejarias, palco não só dos grandes discursos de Hitler, como também dos quebra-quebras entre os capangas nazistas e seus adversários.

Você menciona algumas fotografias conhecidas de Hitler, mas pelas reproduções de páginas do “Münchener Post” incluídas no livro eles pareciam não usar muitas imagens.

S.B. – Só a partir da metade dos anos 20 o “Post” passou a publicar fotos da atualidade, mas ainda assim bem raramente, provavelmente por causa dos custos. Mas de forma geral os jornais não publicavam fotos de Hitler, porque este sempre tomava muito cuidado para ser fotografado apenas por seu amigo Heinrich Hoffmann, seu fotógrafo particular. O que o “Post” publicava mais eram caricaturas. A caricatura era um meio muito utilizado nos jornais da época, para “quebrar” um pouco os textos longuíssimos. E, no caso do “Post”, ela servia para ridicularizar seus adversários políticos, como Hitler.

Você menciona o fato de que havia diversos judeus na equipe de jornalistas do “Post”, mas você chegou a descobrir se a publicação tinha patrocínio de alguma entidade judaica, como afirmava Hitler?

S.B. – Hitler sempre chamava os jornais de esquerda de “marxistas judaizantes”, inclusive os mais moderados, como o social-democrata “Münchener Post”. Vários intelectuais judeus moldaram a imprensa alemã na época e com o “Post” não foi diferente. Antes da aparição de Hitler em Munique, dois nomes importantes do jornal foram judeus, o diretor de redação Adolf Müller e o crítico de artes Kurt Eisner. Nos anos 20, quando Hitler surgiu e os conflitos começaram, o jornal não contava com nenhum judeu na chefia, mas sim entre seus colaboradores: entre eles Carl Landauer, na área da economia, e o advogado Philipp Löwenfeld, que escrevia artigos jurídicos. O principal advogado do jornal, Max Hirschberg, uma personagem importante do meu livro, era judeu e escapou por pouco da perseguição nazista. Mas não há nenhuma fonte indicando que o Post recebesse dinheiro de fora, ou do “lobby judaico”, como Hitler gostava de afirmar. O jornal vivia das assinaturas e dos poucos anunciantes. E por isso sempre tinha problemas financeiros.

O “Münchener Post” foi rápido em escrever sobre Hitler e no acompanhamento de sua ascensão: em 14 de maio de 1920 ele era tratado “um certo senhor Hitler” e em 10 de setembro era “o não tão desconhecido senhor Hitler”. Como era a presença de Hitler nos demais jornais à essa época: ele já aparecia em outros diários antes de 14 de maio?

S.B. – Não. O único que fez alguma menção a Hitler também no início de 1920 foi a publicação antissemita “Völkischer Beobachter”, que logo seria comprada pelo partido nazista. Entre os mais influentes de Munique, o Post foi o primeiro. No começo, ele publicava notas curtas, questionando o que estaria por trás do novo partido. Logo depois elas foram se tornando mais críticas e apimentadas. Os demais jornais só começaram a noticiar a mobilização nazista meses depois, quando a popularidade de Hitler começou a aumentar.

Na sua opinião, até que ponto o “Post” ajudou Hitler ao dar bastante espaço, ainda que negativo, a ele?

S.B. – De um desocupado, sem formação ou profissão alguma, Hitler se tornou, em poucos meses, uma estrela em Munique. Ele certamente comemorou quando viu seu nome num dos jornais mais tradicionais da cidade. Alguns historiadores até sugerem que, com sua campanha desenfreada contra Hitler, o “Post” teria colaborado com a divulgação de suas ideias. Mas o que o jornal queria era alertar as autoridades para o perigo daquilo tudo. Nenhum texto sobre Hitler era escrito de forma neutra. Pelo contrário, eles sempre vinham acompanhados de algum comentário ou de alguma informação que contradissesse o programa nazista. O grande erro, a meu ver, foi da social-democracia alemã, de um modo geral, e dos comunistas. Em vez de se unirem contra os nacional-socialistas, eles se combatiam ao extremo. Quando começaram a pensar numa aproximação, já era tarde demais.

Você acha possível sustentar que a pequena nota publicada em fevereiro de 1923 pelo Post que trata da “solução final da questão judaica” foi a primeira sobre este tema explosivo?

S.B. – Acredito, sim, que este tenha sido um dos primeiros documentos sobre a “solução final”. Na nota, o próprio “Post” diz se tratar de algo “extremamente secreto”, ou seja, que não havia sido divulgado pelo partido nazista. Mas a verdade é que Hitler, já naquela época, não fazia segredo sobre suas intenções. Ele não falava em seus discursos de extermínio, mas defendia claramente a expulsão, a perseguição e o uso da violência contra os judeus. O “Post” tinha ótimas fontes junto ao partido nazista e sempre revelava um documento ou outro. Mas é só ler os discursos de Hitler para constatar que, já nos anos 20, ele defendia em público o que pôs em prática a partir de 1933.

Além das leituras específicas sobre o jornal, quais foram os “pilares” bibliográficos da pesquisa?

S.B. – O Ron Rosenbaum inspirou este livro, mas essenciais foram as biografias de Hitler escritas por Ian Kershaw (“Hitler”, Companhia das Letras, 2010), com uma narrativa cativante, e pelo Joachim Fest (“Hitler”, Nova Fronteira, 2006), mais analítico e pesado. As duas me acompanharam permanentemente nestes três anos.

Quais você considera as maiores descobertas decorrentes de sua pesquisa?

S.B. – Este é o primeiro livro que traz a história detalhada de um jornal pequeno de Munique, que tentou, de forma desesperada e até o fim, impedir a ascensão de Hitler. Fez isto, enquanto assistia à perseguição em massa promovida por Hitler já no primeiro mês de seu governo. Não amainou sua campanha em nenhum momento, até ser destruído. Apesar de conhecerem esta história, os historiadores alemães não acharam que valesse a pena contá-la para um público mais abrangente. Aqui, ninguém conhece o “Münchener Post”, nem mesmo os políticos sociais-democratas atuais.

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Cassiano Elek Machado é repórter da Folha de S.Paulo