O “Münchener Post” descobriu em 1920 “um senhor chamado Hitler”. Desde então, até desaparecer, cinco meses depois da ascensão do Führer, em 1933, o jornal participaria de um enfrentamento suicida e visionário.
O livro de Silvia Bittencourt é o primeiro a contar uma história heroica e surpreendente. Tem como cenário a deterioração econômica, partidos de direita e esquerda organizando milícias, o poder público debilitado, a escalada da violência.
Por que o “Münchener Post” ficou tanto tempo esquecido? Ron Rosenbaum, ao registrar em 1998 esta lacuna na história do jornalismo, lembra ser mais reconfortante para a autoestima alemã acreditar que ninguém realmente sabia quem era Hitler até ele assumir o poder.
O “Post” sabia. Criado pela social-democracia alemã, com mais de meio século de militância, o jornal tentou abater Hitler no nascedouro.
É uma coleção dramática de episódios até a destruição total das suas instalações: confrontos verbais, agressões físicas, ameaças, pequenos atentados, censura, interdições, processos, invasões, empastelamentos.
A partir da aparição nas cervejarias de Munique, o jornal atacou Hitler por todos os lados. Ridicularizou seu estilo. Investigou seu jeito de viver. Cuidou do seu guarda-costas, das suas roupas. Denunciou crimes e a matança de adversários.
Intrigas e chantagens
No apêndice do livro, onde estão traduzidos seis artigos originais do jornal, é possível ler, por exemplo, o texto no qual o “Post” antecipou a “solução final da questão judaica”, em 1931.
O título, “A Cozinha Venenosa”, é uma das maledicências de Hitler dirigidas ao jornal, “judeu e marxista”.
“Münchener Pest”, esbravejavam os nazistas, tratados como criminosos,e não agentes políticos, por jornalistas destemidos como Martin Gruber e Edmund Goldschagg.
Se a tiragem do jornal era modesta (15 mil exemplares em 1932), seu engajamento partidário (alguns de seus colaboradores seriam personagens importantes do jogo político: Kurt Eisner, após proclamar a República da Baviera e ser seu chanceler, foi assassinado em 1919, horas antes de o futuro editor Erhard Auer sofrer um atentado) tornaria o conflito mais intenso.
Silvia Bittencourt vasculhou arquivos alemães e mostra a desenvoltura de Hitler em busca do poder, usufruindo da desintegração institucional do país, da inanição da polícia e dos tribunais.
Soaria estranha hoje a exploração sensacionalista do suicídio da sobrinha de Hitler pelo jornal.
Contra um princípio programático do próprio partido, pela descriminalização da homossexualidade, o “Post” divulgaria intrigas e chantagens em torno do comportamento de Ernst Röhm, comandante do exército privado de Hitler: o nacional-socialismo era “um depósito de doentes e homossexuais” prestes a vencer.
Hitler era tangível e vulnerável, acreditava o “Münchener Post”. Para destruí-lo, valia tudo.
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Luís Francisco Carvalho Filho é articulista da Folha de S.Paulo