Não tenho nenhuma intenção de afirmar que a cobertura das TVs, especialmente a da Globonews, que tenho acompanhado diariamente em horário nobre, principalmente nestes dias de manifestações, induza à violência. Existem profissionais mais qualificados para pensar sobre isto. Não é isto! O incômodo se dá quando percebo que sua cobertura das atuais manifestações no Brasil tem uma característica que desponta rapidamente: ela “fala” que as manifestações são pacíficas, mas o que “mostra”, durante boa parte de seu tempo, ao vivo ou não, neste horário nobre, é que as manifestações são violentas. Por quê? Como entender isto?
O apego ao “diferente”
É claro que, após os primeiros dias das manifestações, a imprensa (e todos nós) começou a perceber que não era a manifestação em si violenta, mas que alguns grupos estavam aproveitando-se da situação para depredar e saquear.
Não estou querendo, também, dizer que a Globonews é “isso ou aquilo”, até porque tenho uma noção muito clara de que todo e qualquer veículo de comunicação possui, em seus discursos, intencionalidades ideológicas. E isso, em si, não é problema algum, pois é na diferença de opinião que a democracia se constrói. Se fôssemos nos preocupar somente com a “verdade” não teríamos tempo para discutir e construir a democracia. Não é aí que está o meu incômodo destes dias. Está na forma como concentrou sua cobertura em atos de violência que chegaram a ficar repetitivos no curto espaço de tempo da mesma noite.
Chega de “carros incendiados”
Claro que a imprensa não escapa ao domínio do “anormal”, do “diferente”, daquilo que chama a atenção pela sua negatividade ou, no caso, destrutividade. É aí que os atos de violência se encaixam, embora não expliquem muita coisa.
Se a cobertura quisesse, poderia ter mostrado muito mais, e de forma mais enfática, cenas de confraternização, de felicidade, de orgulho, de sorrisos estampados no rosto, cartazes, de cantos e apelos por bem-estar e justiça social. Cenas que ocorreram entre os milhões que foram às manifestações. Mas não. Apegou-se decididamente a uma minoria, bem minoria mesmo, que optou pelo banditismo. E o resultado foi que ficamos com o olhar cravado de cenas de fogo, fumaça, pedras e faíscas de bombas lançadas de ambas as partes.
Não estou falando de nada tão desconhecido. Afinal, as coberturas do carnaval não são assim? As coberturas da parada gay não são assim? A cobertura da Copa das Confederações não é assim? Nesses momentos, não se opta por mostrar a felicidade? Por que com as manifestações de milhões de brasileiros não pode ser assim? A felicidade também dá “ibope”! É só ousar e tentar.
Não gostaria que meu olhar ficasse “vidrado” em um carro incendiado. A cena surge como algo tão distante da própria manifestação, que acaba “esquecida” e segue seu rumo, sua caminhada democrática, muitas vezes “esquecida” pela cobertura.
Fragilidade e incompetência
São tantos minutos e horas dedicadas à “destrutividade”. Poderiam ser melhor aproveitados. As TVs poderiam, então, aproveitar este tempo para se ir conversando mais, para se ir construindo um entendimento, ainda que precário, sobre a realidade. Vivemos um momento psicopolítico riquíssimo.
Mas o drama é que uma cobertura assim acaba enfatizando aquilo que é “menor”, mas que gruda em nossa “natural” curiosidade acerca do diferente. Não, não temos essa “natural” curiosidade. E se a possuímos ela pode, muito bem, conviver com outras curiosidades. E a mídia pode ser um excelente modelo de identificação, para muitos brasileiros, daquilo que é essencialmente bom e construtivo. É nesse recorte do que é “menor” que, quase sempre, a política acaba se concentrando e debatendo de forma, também, “menor”. Quer um exemplo? Não concordaria jamais em classificar as manifestações como “violentas”. Mas, tenho ouvido isso demais e sempre com exemplos sustentados nas coberturas das TVs. E o resultado? “Ondas conservadoras” ameaçam o país! É sempre assim, quando o institucionalismo é mostrado em sua fragilidade e incompetência quem é o responsável que vai para a primeira cena na TV é o “vândalo”.
Não quero dizer que este tipo de cobertura não tenha que existir. São fatos, merecem ser cobertos, sim, e divulgados. Mas são eles que definem o conjunto das manifestações. Ou são utilizados para, simplesmente, se fazer uma “leitura” da realidade para lhe dar um nome específico: “violência”?
O entendimento da realidade
Sou um especialista em pesquisas de opinião e em psicologia política e, portanto, meus conhecimentos sobre a mídia não são tão profundos como os de um profissional da área, mas entendo que são questões muito próprias do jornalismo oscilar, ora entre uma maior investigação, ora entre uma maior preocupação com a audiência, ora entre uma pressão mais comercial. Enfim, é justamente neste diálogo que todos vamos nos aperfeiçoando. Não em direção a uma suposta “neutralidade” da imprensa. Não acredito nisso. Mas, em direção a um diálogo cada vez mais democrático e inteligente.
Sim, o mais “inteligente” é importante, sim. Por isso falei em se ir construindo um entendimento sobre o processo psicopolítico que vive o Brasil atual. Afinal, dessa vez não é o povo que assiste a tudo “bestializado”, como disse Aristides Lobo em um artigo de 1889 acerca da República brasileira. Dessa vez, o povo está assumindo um papel. Não sabemos bem onde vai dar isso, mas, em minha opinião, já está resultando em fortes ganhos de autoestima e cidadania.
Dessa vez, me parece que são as autoridades da República que estão assistindo a tudo “bestializadas”. Uma sensação ruim, é claro, mas que pensei que o povo já estava demasiado acostumado a ela. E é justamente neste processo de aprendizado-cidadão que a mídia, todo o conjunto da mídia, tem uma grande parcela de responsabilidade. Ou não?
Por acaso estou comentando sobre a Globonews, mas acho que poderia ser o mesmo com outras coberturas televisivas. Está tudo muito padronizado no horário nobre. Principalmente agora que parece que se “acertou” que o tom da cobertura geral é o de apontar e denunciar a “destrutividade” causada pelas manifestações.
Aliás, por que o horário é tão “nobre” se pouco o aproveitamos bem? Por que é justamente no horário “nobre” que menos se fala sério sobre a política? Essa pergunta eu nunca consegui responder satisfatoriamente e de forma que me contentasse. Talvez aí seja o momento da imprensa menos voltada para o processo investigativo, comprometida com o entendimento da realidade e mais apegada aos legítimos, necessários, mas superficiais interesses comerciais e de audiência.
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José Henrique P. e Silva é cientista político; São Paulo, SP