Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um coro de bendizer

Ontem e hoje, grande parte das vozes dos jornalismos impresso e televisivo aponta o enigma. Qual é verdadeiramente a pauta das manifestações públicas que se arrastam pelo país como fogo no capim seco? A resposta talvez seja o coro. O bendizer do coro desafinado dos descontentes, heterogêneo, composto por sussurros, vozes e gritos; coro de vários, estranha multiplicidade que assusta pelas fendas que faz nascer no bloco compacto das categorizações; diversidade que incomoda pelo que expressa também de contradição. E de incontrolável. E de criativo e bendito. O uno, o transparente e o coeso ficam opacos se observamos os cartazes e os escritos. Estamos diante de um movimento de (bem)dizer metaforizado por conjuntos não-todos que dão lugar criativo ao diverso, ao apartado do mesmo, ao estranho. Ao fragmentário com pontos de fuga, com pontos de vários encontros, com três pontos no final, com pontos de interrogação e sem ponto final. “82 anos, não vim brincar, vi manifestar”. “Queremos escolas e hospitais no padrão Fifa”. “Fora corrupção”. “Contra o genocídio da juventude negra”. “Da Copa eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”.

É preciso ler o coro nos cartazes – muitos estandartes poéticos e políticos de bendizer – que os manifestantes de várias idades carregavam, e significar o discurso que inscrevem. Talvez ele tenha relação com o modo como os manifestantes têm se organizado sem um controle ou comando central, sem uma voz que os diga exatamente o momento de levantar ou sentar, tampouco o que deve ser escrito, cantado ou dito ao longo de cada ato, de cada cartaz. A festa não tem script pronto e cada um precisa inventar o seu. Isso permite de modo essencial a plurissignificação em jogo e a polissemia aberta ao inesperado, traços que apavoram pela instabilidade que armam.

Individual ou coletivamente

A começar pelo modo de chegar à concentração, por exemplo, os manifestantes chegavam ao Largo da Batata em São Paulo, na última segunda-feira, derivados de vários locais de encontros. Por todos os lados. Eram grandes grupos sentados no chão, produzindo seus cartazes, faixas e tramas de dizeres. Com tintas e canetas, anotavam algo a circular de modo não dirigido, valia a pele como papel, a faixa como pele, o papel como voz. Outros grupos chegaram em pequenas passeatas com bandeiras e faixas em punho; aumentava o coro. “Verás que um filho teu não foge à luta”. “Afasta de mim este cale-se”. “O país do futuro chegou”, era o que a pele da moça grávida dizia em sua negritude. Ontem, em mais de um ponto da cidade, manifestantes desenhavam sua coreografia no centro mais à direita e à esquerda, na frente da prefeitura e longe dela. A cidade compôs-se como zona espalhadamente criativa, movediço campo de palavras em jogo, em desacordo, em descontentamento. “Desculpem o transtorno. Estamos mudando o país”. “País em manutenção”. “Nosso grito não vai pro esgoto”. Os grupos diferentes, em separado, escolheram-se em parcerias com seus alguns e, só depois, tocaram para o grande encontro. Compuseram-se dentro de um núcleo, marcado pelo diferente e singular para tornarem-se, no depois, parte de um conjunto, sustentando, ainda assim, algo de si na diferença. E da diferença na multidão. “2.80 é open bar?”. “Legalize vinagre”. “Não gosto de balas, passa um Halls”. “Contra a corrupção”. “Por um Brasil melhor”. “Chega de violência”.

Espaço da cidade polvilhado por múltiplos efeitos, geografia discursiva mantida por inúmeras reivindicações relacionadas ao transporte, saúde, educação; nova topologia de esperanças compartilhadas no um a um. Talvez isso trace pontilhado diferente na ordem das repetições de manifestações populares, de atos públicos e da própria tessitura política. Talvez isso assuste, e deixe os analistas confusos, buscando unidade onde o heterogêneo fincou raízes. É imensa a quantidade de cartazes escritos individual ou coletivamente, manuscritos de uma autoria outra, diferente daquela que as faixas impressas e os banners publicitários nos mostraram outrora. Os manifestantes escreveram de próprio punho, colocaram no papel sua própria palavra de indignação, escreveram e pensaram por si próprios. “O gigante acordou”. “Seu recalque bate no meu vinagre e volta”. “Mãos ao alto, 3.20 é um assalto”. “Ética, cadê vc?”. “Revogaumento”. “Não vamos deixar nossa voz sumir na fumaça”.

Música antiga

Os cartazes – e todos os escritos entre aspas desse texto – empurraram para a rua uma diversidade produtora do diferente de tudo o que está dado como natural para uma mobilização política com pauta única. Poucos dizeres repetiram o mesmo, aconteceu a palavra de modo jocoso: eis que o singular ficou estampado na massa. “Descatralizemos SP”. “Não é por centavos, é por direitos”. “Malddad”. “Todo vagão tem um pouco de navio negreiro”. “Maldito sistema”.

O movimento de contar a singularidade permitiu deslizamentos de sentido, muito frequentes, trazendo para a avenida uma agilidade possibilitada pela tecnologia, que deu suporte à circulação de vídeos, posts informativos e notícias do andamento da própria manifestação. Maior parte dos manifestantes estava com celular na mão ou no bolso, e na ponta da língua. “A rede social somos nós”. “Saímos do Facebook”. “Deseja formatar o Brasil? Sim”. E os logotipos dos aplicativos mais usados na internet apareceram também com forte regularidade, apontando indícios do que alguns teóricos têm marcado como a cibermilitância, ou registrado como a importância da tecnologia na atuação dos movimentos sociais. “20 centavos a gente não vai copiar e colar”. “Tem que deletar o aumento”.

Música antiga ganhou roupagem outra, teve o seu campo revirado e remexido; a fantasiosa música infantil, que atravessou a formação da infância de muitos manifestantes, pôde dizer da violência sem os tradicionais gritos de guerra, embora eles também estivessem lá. “Era um país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio… Ninguém podia protestar não porque a PM sentava a mão”. “Muda, Brasil”. “Sem violência”. Até o xingamento, tão cotidianamente repetido, aconteceu de outro modo: “Enfia os 20 centavos no SUS”.

Emoção rasa e funda

Cartazes jogaram com nomes de homens públicos, vários deles citado de modo a convocar diferentes situações e fatos. Um deles deslocou a imagem da presidente do país, apontando uma região de sentidos que pouco retorna sobre ela. “Queremos esta Dilma” e a emblemática fotografia da militante de esquerda em julgamento destacava o preto e branco como marcas do passado. “Renan, pegue seu banquinho e saia de mansinho”. “Feliciano não me representa”. “Fora governador de SP”. “Muda, Brasil”. Palavras reincidentes no coro que apontava, na diversidade, os espaços de indignação diante da corrupção das instituições, anunciando como os gritos de galo do poeta certo modo de pedir decência na esfera pública.

Alguns músicos tocavam instrumentos, namorados se abraçavam mais forte ainda, muitas moças singelas tinham flores nos olhos, no cabelo e nas mãos… O homem com o bebê amarrado à barriga anunciou “Essa aqui é vândala”… O idoso tirava fotos sem parar, a mulher estendeu lençol branco na sacada, mil aplausos. Mais outro lençol, e outro. “Se o aumento não baixar, São Paulo vai parar”. “Gritamos paz, ganhamos gás, e o que vc faz?”. “Veja, Isto é o Brasil”. “Abaixa a tarifa é põe na conta da Fifa”. “20 centavos é Malddad”. “O gigante acordou”.

Em meio ao turbilhão de vozes em coro, algumas desorganizavam ainda mais o heterogêneo do coro. Lançavam dizeres que zombavam do político, ordenando um reviramento em que tudo poderia ser dito, suportado, inscrito como seu. “Pelo fim do funk alto no busão”. “Abaixem o preço da nutella”. “É uma vergonha a passagem ser mais caro que a maconha”. “Ash roubou minha bicicleta preciso de um transporte público de qualidade”.“Se minha mãe souber que to aqui eu to ferrada”. Esse aparente desafinar é também parte de um acontecimento que o país não via nascer há décadas de modo tão inventivamente desordenado e diverso, rico e efetivo. Cartazes diferentes e tonalidades tão desiguais caminharam juntos sem que seus autores precisassem se anular, agredir ou eliminar.

Os jovens ensinaram concretamente a arte de con-viver e a poética de bendizer. Uniram-se, com o seu peculiar, ao cantar os hinos onde cabiam todos, onde todos tinham espaço, onde a diferença os acompanhou para produzir um coro: “Sai do chão contra o aumento do busão”. “Violência não”. “O povo unido jamais será vencido”. Enquanto escrevo este parágrafo, é divulgada a redução das tarifas em São Paulo e Rio de Janeiro… Pouca palavra dá conta de expressar a emoção que sinto nesse instante. É emoção rasa e funda, singular e cheia de vozes… É emoção solidária a cada caminhante que saiu de casa e se pôs a andarilhar esperanças pelos céus das cidades, àqueles que sentiram na pele o ferro em brasa da intolerância, a cada um que escreveu e denunciou a violência… É a emoção persistente de perceber o coro, um coro de bendizer.

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Lucília Maria Sousa Romão é professora livre-docente da Universidade de São Paulo