Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um olhar sobre a experiência democrática da minha geração

Eu pensei que não viveria para ver isto. Realmente nunca acreditei que algum dia veria as pessoas nas ruas lutando por uma causa. Ou melhor, por muitas! Há muito tempo percebo e discuto em meus círculos que o transporte público é uma questão muito grande, muito séria que afeta a todos. E por que? Porque um transporte ruim…

– Impede o direito de ir e vir;

– Separa regiões periféricas dos grandes centros, ou seja, segrega os pobres dos ricos, afasta pessoas dos locais onde há hospitais, comércio, bancos, equipamentos de lazer, uma vez que os bairros são pouco estruturados;

– Onera famílias, afinal, em uma família média (com quatro pessoas por casa) nem todos trabalham de carteira assinada para receber auxílio-transporte;

– O custo do transporte não é apenas o custo da passagem, mas o custo do tempo perdido no deslocamento que impede os cidadãos de descansarem mais, ficarem mais com suas famílias, estudarem mais, trabalharem e produzirem mais!

– Onera também empresários, que arcam com os custos das passagens caras e sofrem as consequências de trabalhadores chegando atrasados ao trabalho, cansados, irritados, o que gera menor produtividade;

– Não atende a população, que por outro lado, é assediada com propagandas e incentivos fiscais para a compra de carros e acaba cedendo, por achar que assim vai resolver o próprio problema de mobilidade, porém…

…O excesso de carros na rua gera um problema ainda maior com o aumento de trânsito nas grandes cidades.

Valores vividos

Meus pais votaram no PT durante bastante tempo. Assistíamos ao programa político-partidário reunidos, tipo lazer em família, prestando atenção de verdade. Tendo pais professores, acompanhei assembleias de greves de professores e me lembro bem da última grande, em 1989. Dei abraço na Avenida do Contorno, nas eleições de 1989, fui assistir à votação do impeachment do Collor na Praça 7, em 1992. Tudo isto, ainda criança. Alguns anos depois, comecei a votar, entrei na universidade e pude formar minhas próprias opiniões. O Brasil elegeu um presidente sociólogo, depois um presidente-trabalhador e o reelegeu. Há algum tempo, meus pais não conseguem mais acreditar no que acreditavam antes. Compreensível. Mas esta é a história deles.

Já eu, sou de uma geração que cresceu na decepção política, na frustração pós-diretas. Não quero dizer com isto que queremos que a ditadura ou qualquer regime totalitário retorne, mas não nos entusiasmamos com a democracia, como a geração que lutou por ela se entusiasmou. Vimos um presidente com origem em luta trabalhista subir ao poder, ele foi reeleito, elegeu sua sucessora, mas nada mudou.

Sou da geração que viu a volta das eleições diretas, mas viu muito roubo, corrupção e impunidade, os velhos coronéis permanecendo no poder, aumento da violência, permanência da pobreza, aumento do consumo sem aumento de consciência, nenhuma solução para a questão agrária e da moradia urbana, piora da educação e da saúde, milhares de crianças e jovens escravizados pelas drogas e a falta de perspectivas, o esvaziamento do discurso e da prática político-partidária… A ponto de causar nojo e repulsa, gerar total desânimo. E com este desânimo vivi durante bastante tempo. Passei a acreditar que minha forma de ação política seria a atuação individual ou em grupos pequenos, por meio da minha profissão, do meu empreendedorismo, da minha forma de ser e de agir com o outro, dos meus valores – ética, respeito ao outro, transparência… – sendo vividos de forma consistente.

Observar e entender

Mas há muito tempo, em conversas informais no ponto de ônibus, dentro de um táxi, num consultório médico, em qualquer lugar, é possível perceber a tolerância das pessoas chegando ao fim, um desespero se instalando. Até aí, tudo bem. Poderia ficar só nisto e não virar ação. Mas vieram outros sinais de desejo de mudanças: nas redes sociais e internet como um todo se multiplicam grupos para discutir temas, trocar informações, aprender com experiências que deram certo, mas até então, era mais reclamação do que ação.

Pequenos eventos para discutir questões de interesse geral – como o transporte público, corrupção, saúde e educação começaram a surgir. O movimento gay ficou realmente forte. Pequenos movimentos pequenos começarem a se organizar e a crescer. Aqui em BH, um grupo se organizou contra o corte de árvores centenárias sem explicação clara da prefeitura, conseguiram apoio do Ministério Público e agora acompanham de perto as medidas de controle da doença nas árvores. A maioria destes movimentos usaram a internet para se organizarem. Afinal, “nunca antes na história do mundo”, foi possível se comunicar com tantas pessoas, tão rápido e independentemente das grandes mídias. Isto é fato!

É fato também que em menos de uma semana – entre o manifesto violento de SP na quinta-feira passada e hoje, 17/06 – o movimento ganhou proporções maiores em todo o território nacional. Confesso, tive medo de ir para as ruas. Mas o movimento só começou. Então ainda tenho tempo de me juntar aos demais e “engrossar o caldo”. Mas ainda estou na fase da surpresa, de observar e tentar entender. E aí, de tanto pensar, levantei alguns pontos.

Não há partido capaz de organizar algo deste tipo

Para além da forte contribuição da internet e redes sociais para estas manifestações, outras características as diferenciam das manifestações de outros tempos.

– As reivindicações são muitas, pois o sentimento de insatisfação é amplo. Envolvem redução do preço das passagens, melhorias no transporte público, a questão maior de mobilidade urbana nos grandes centros e vão até melhorias na educação, saúde, segurança pública, contra a PEC 37… Trazem também um imenso desconforto com a corrupção e com os gastos empenhados pelo poder público para realizar a Copa das Confederações e a Copa do Mundo no Brasil, em detrimento de investimento nas questões essenciais que apontei acima.

– Pelo fato de haver várias reivindicações, há também interesses e grupos heterogêneos envolvidos e que até divergem em algumas questões. Por isto, é difícil entender e resumir o que está acontecendo. Mas é possível afirmar que vários setores estão se manifestando por melhorias e mudanças ligadas a direitos fundamentais e pelo exercício pleno de sua cidadania.

– Apesar do movimento ter nascido apartidário, alguns membros de partidos, sindicatos e outros grupos organizados tem se unido ao movimento e levam suas bandeiras e ideais, o que, para muitos, acaba confundindo e até enfraquecendo a movimentação. Petistas alegam que o movimento for orquestrado por oposicionistas. E oposicionistas alegam que o movimento foi orquestrado por petistas. O que vejo é que não há partido capaz de organizar algo deste tipo.

“O Brasil é assim mesmo”

– Sendo assim, vemos na TV que em algumas cidades, as autoridades têm encontrado dificuldades em estabelecer diálogo com representantes das manifestações pelo simples fato de que não há representantes oficiais. Uns e outros dão entrevistas, mas falam apenas pelo seu grupo, não pelo todo. Interpreto isto como o seguinte: a população não quer ser representada por ninguém, pelo menos por enquanto. Já basta ser representada pelos políticos que fazem tão pouco pelo povo.

– Atenção para o fato de o movimento não ser partidário ou ligado diretamente a um único grupo de interesses. Isto não significa que o movimento seja apolítico, ou mais fraco. Ao contrário, ele está além dos partidos. Ele é muito político e trata de uma crise de representatividade que se abate sobre os líderes, partidos, decisões e instituições que estão instaladas no Brasil.

– O fato dos movimentos de SP e Rio terem sido brutalmente reprimidos na semana passada, gerou uma onde ainda maior de movimentos contra a violência policial e a repressão dos governos contra manifestações políticas de direito em uma democracia. Já há muito tempo, é este o tratamento que os governos dão a qualquer movimentação popular.

– E também não é de hoje que a mídia cobre este tipo de evento usando termos como: vandalismo, arruaça, bagunça, tumulto, confusão, quebradeirae outros do tipo, mas raramente dão voz aos manifestantes, para sequer saber quais as reinvindicações. Quando professores entram em greve – e aqui em BH e Minas Gerais eles sempre entram, pois nunca conseguem os aumentos salariais devidos e prometidos –, a imprensa só fala do transtorno que causam para as famílias que não têm onde deixar suas crianças.

Bom, agora você deve estar se perguntando: para onde caminha isto? Não se sabe. Mas o importante, é que não pode parar. Arrisco-me a dizer que o momento de organizar as reivindicações e escolher um representante para se sentar com autoridades, exigindo mudanças claras, ainda está longe de virar prioridade.

Mais importante, por enquanto, é expressar a indignação por tanto desrespeito aos direitos da população, por tantos anos calados, por tanta corrupção e impunidade que engolimos sob a cultura de “O Brasil é assim mesmo”. E se expressar para o mundo todo ouvir é melhor ainda. Assim, quem sabe, mudamos a imagem e internacional sobre o Brasil? Quem sabe nos cansamos de ser apenas o país do carnaval, futebol e cerveja? Quem sabe possamos ser reconhecidos por outros valores e atitudes, que reflitam melhor o que a maioria das pessoas vive aqui diariamente?

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Marina Pereira Queiroz Rochaé jornalista, Belo Horizonte, MG