Tenho acompanhado de perto, nos últimos 30 meses, grandes movimentos sociais na Europa, no Norte da África e no Oriente Médio. Recentemente, estive em Istambul, na Turquia, quando do início da mobilização popular na Praça Taksim e no Parque de Gezi. E, por razões evidentes, também presto a máxima atenção no que se passa no Brasil neste momento. Observo essas manifestações como jornalista e também como sociólogo, ao mesmo tempo tentando estabelecer pontos de contato entre os manifestantes de origens e naturezas tão diferentes e compreender a reação histérica e violenta dos governos desses países.
Turquia – onde estive cinco vezes nos últimos dois anos – e Brasil viveram ao longo da segunda metade do século 20 uma sucessão de governos militares. Em ambos, a inércia da cultura autoritária ainda está no ar e se reflete, por exemplo, na forma agressiva e corrupta como a polícia se comporta tanto no “controle” de multidões como na vida cotidiana.
Em ambos, ciclos de instabilidade política e de declínio econômico foram revertidos por um salto no início dos anos 2000: a confluência da globalização econômica, que abriu novas perspectivas de prosperidade a países subdesenvolvidos, elevados à condição de potências emergentes, e a chegada ao poder de grupos políticos que lutaram contra o status quo ao longo das décadas anteriores.
Na Turquia, Recep Tayyip Erdogan e Abdullah Gül, líderes do AKP, de centro-direita, representavam a liberação de segmentos islâmicos da sociedade que tinham direitos tolhidos, como o da livre expressão religiosa, por sucessivos governos que alegavam a defesa do Estado secular. Em paralelo, o Brasil assistiu à chegada de Lula e Dilma Rousseff ao poder, marcando o apogeu de 35 anos de luta de movimentos e de partidos de esquerda – primeiro clandestina e depois eleitoral.
Em comum, Erdogan e Lula tinham pelo menos uma característica política: eram neopopulistas moderados, um de centro-direita, outro de centro-esquerda. Também compartilhavam um desafio: incluir na classe média dezenas de milhões de pessoas até então marginalizadas por elites político-econômicas que, de forma voluntária ou involuntária, por décadas impuseram obstáculos à distribuição de riquezas e ao acesso à educação.
Estado opaco
Como todos vimos, o resultado das políticas públicas orientadas para a inclusão social foi estrondoso ao longo dos anos 2000. Em 2001, penúltimo ano de exercício do premiê Bülent Ecevit, do Partido Democrático de Esquerda (DSP), o PIB da Turquia era de US$ 196 bilhões, segundo dados do Banco Mundial. Em 2011, após dez anos de poder do AKP – nove dos quais de Erdogan –, o PIB do país chegou a US$ 774,9 bilhões.
No Brasil, a evolução foi semelhante: de US$ 504,2 bilhões em 2002, último ano de Fernando Henrique Cardoso, o PIB saltou a US$ 2,47 trilhões em 2011, ainda conforme o Banco Mundial.
Durante essa década de milagres econômicos, as populações da Turquia e do Brasil demonstraram nas urnas apoio quase incondicional aos partidos no poder, AKP e PT. O que acontece agora, então? Por que essas populações se levantam? Pelo corte de árvores? Por 20 centavos?
Na Turquia, o discurso inicial, contrário à demolição e à privatização de espaços públicos, se transformou em um ato político contra o primeiro-ministro – embora não contra seu partido –, acusado de se valer do poder e de sua popularidade para dirigir o país com práticas autoritárias. Um exemplo dessa deriva foi reverter a repressão religiosa a muçulmanos, mas impondo paulatino controle e vigilância de costumes a seculares. Mas há bem mais do que isso: há práticas políticas e econômicas opacas demais, que envolvem clientelismo em larga escala, corrupção das esferas de poder e, sobretudo, autoritarismo.
No Brasil, o discurso inicial era contrário ao aumento da tarifa de ônibus cobrada por um serviço de péssima qualidade. Aliás, nada melhor para ilustrar o clientelismo do que os planos diretores das cidades brasileiras, tão falhos, ou do que as gestões municipais que continuam a privilegiar, na pior acepção da palavra, o poder de incorporadoras e empreiteiras, de empresas de transporte coletivo e toda sorte de doadores de caixa 2, em detrimento de políticas públicas que visem, em primeiro lugar, ao aperfeiçoamento da cidade.
Nada mais natural que essa insatisfação contra um serviço público viciado pela corrupção, pelo preço elevado e pela precariedade, transforme-se em um movimento difuso, cujas principais manifestações resultam, por exemplo, na ocupação ou na tentativa de invasão de símbolos do poder, como a prefeitura de São Paulo, a Assembleia Legislativa do Rio ou o Congresso Nacional e o Palácio do Itamaraty, em Brasília.
O que há de mais sintomático do que questionar o Estado que prima pela opacidade e que tenta desestimular, pela força ou pela propaganda, toda e qualquer mobilização popular, sempre associada a “vandalismo”, “baderna” e até “terrorismo”? O que há de mais legítimo do que questionar a “ordem”, quando ela não passa de status quo viciado pela herança autoritária?
Mais justiça
O que eu vi nas ruas de Istambul, e sinto como brasileiro, pode ser resumido na palavra que está em todas as mentes e discursos desde as primeiras manifestações: exaustão. Turcos e brasileiros, aos se reapropriarem dos espaços públicos – que, portanto, são seus – estão enviando uma mensagem a seus dirigentes: há uma fadiga do discurso neopopulista, no qual o PIB explica tudo, e também uma fadiga da oposição, que não representa de fato uma perspectiva de mudança.
Crescimento e consumo não bastam mais. O recado das ruas que percebo é que países emergentes e suas democracias defeituosas precisam de um novo salto sociopolítico. Precisam de mais transparência na gestão dos recursos e das políticas públicas.
Conte ao seu redor: quase ninguém quer revolução, queda do sistema, substituição no poder, fechamento do Congresso, renúncia do presidente. Todos querem estabilidade institucional, sim, mas com aprimoramento da democracia. Todos querem mais liberdade, menos repressão, mais transparência, mais justiça, menos corrupção. Todos querem o fim do discurso do milagre e a construção de uma realidade mais justa. E essa reivindicação, é importante que se diga, não tem nada de imprecisa.
E quanto às reformas?
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Jornalista e sociólogo, correspondente do jornal O Estado de S.Paulo em Paris