Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cidadania pede precedência

Ninguém consegue explicar razoavelmente o que se passa no país. É impossível prever o que vai acontecer amanhã. Nenhum novo líder ou organização se sobressai como porta-voz das manifestações, não há reivindicações concretas para negociar – exceto a residual redução do preço dos ônibus urbanos, que já deixou de ser a reivindicação central dos movimentos. Autoridades, partidos políticos, jornalistas, cientistas sociais estão todos atordoados com as passeatas que de repente tomaram conta do país. A rapidez e o volume das manifestações pegaram todo mundo desprevenido. Ou melhor, despreparados para compreender e traduzir o que está acontecendo.

A mídia nacional, uma vez mais, demonstra seu despreparo para cobrir esse tipo de evento. Foca holofotes e câmaras nas ações de impacto: pancadaria, truculência policial, arremesso de bombas, depredação de prédios públicos, ônibus quebrados, carros em chamas, tiros de bala de borracha, spray de pimenta. Trata tudo como vandalismo, estigmatizando um movimento complexo em uma marca redutora. O foco prioriza o excepcional ou o inusitado. As performances dos ativistas ou policiais são priorizadas porque mostram mais ação, são mais grotescas, provocam maior comoção. A mídia tradicional adora isso.

A busca de explicações e interpretação dos acontecimentos é exceção: não é o foco do grosso das matérias sobre as manifestações. A imprensa, como os partidos políticos e as autoridades públicas, continua priorizando os efeitos e desprezando as causas. Seguem cegos ao que se passa no Brasil.

Desenvolvimento humano

Esse despreparo não é surpresa. A mídia nacional (como os partidos políticos) não soube acompanhar as profundas mudanças ocorridas no país nas últimas décadas. Não teve sensibilidade para observar que os interesses e reivindicações sociais mudaram muito. Nos anos pós-ditadura militar, um segmento significativo da sociedade ascendeu economicamente, mobilizou-se e se organizou, criou novos espaços democráticos. Deixou para trás os jurássicos partidos políticos que não acompanharam o avanço social. Proliferaram pelo país movimentos sociais ativos ou passivos, todo tipo de organizações não-governamentais e redes sociais virtuais organizadas em torno das mais variadas causas.

Por outro lado, com frágil organicidade, inúmeros movimentos pouco institucionalizados centralizam circunstancialmente a atenção em torno de temas provisórios, que mudam de acordo com o vento. Sopram hoje para um lado; em outro momento, se viram para o outro, até mesmo o lado oposto. Não estão concentrados em torno dos processos de produção, como os velhos sindicatos, mas voltados para a fluidez e a fugacidade do consumo, para a causas efêmeras que logo se esgotam e se tornam obsoletas. Raramente se consolidam em torno de ideologias programáticas, não cobram lealdade nem compromissos permanentes de seus membros. Isso desconcerta os velhos partidos e as autoridades. E a mídia tradicional procura sempre um líder porta-voz, uma demanda concreta, números precisos. Não há o específico, só o genérico.

A fluidez, entretanto, não retira dessas organizações e movimentos sociais a capacidade e a aptidão para mobilizar instantaneamente seus adeptos. Contam para isso com as redes digitais que hoje entrelaçam a sociedade por cima das diferenças econômicas ou classes sociais, e com a portabilidade dos aparelhos celulares, tablets, netbooks e outros gadgets tecnológicos. Importa tanto a velocidade para mobilizar, e sua visibilidade, como uma possível atratividade dos temas: parada gay, mostrar os seios nus por uma causa, ir para rua criar visibilidade e só depois ficar sabendo para quê. Tudo é performance, teatro, demonstração.

A mobilização atual tem um pouco de cada um desses componentes, daí a dificuldade dos setores tradicionais de enquadrá-las nos antigos modelos de manifestações. Elas não encaixam neles, não há líder, não há demandas permanentes, não há causas programáticas. Apenas uma vaga luta por um país melhor. Pode até haver, momentaneamente, algumas causas locais. Mas elas não se fixam, mudam em seguida.

Limitar o movimento atual ao simples exibicionismo é reduzir, entretanto, o seu alcance político. O movimento é mais complexo, e as manifestações têm significados políticos contundentes. Ele tem origem na insatisfação acumulada há décadas com o “elitismo democrático” de nosso sistema político. Na decepção com partidos e parlamentos pouco representativos; no excesso de centralismo, na burocracia autoritária, na corrupção. Seguidas frustrações acumularam desilusões no imaginário popular. O movimento atual não chega a articular demandas políticas direcionadas a uma democracia direta, não tem consistência para isso. Mas há uma clara desilusão com a nossa democracia representativa. Através do movimento, a cidadania pede precedência sobre o Estado.

Ele tem origem também na exclusão econômica e cultural que persiste no país. A proporção da mão de obra empregada hoje é maior que no passado recente, mas a qualidade de vida nas cidades não aumentou na mesma proporção da geração de renda. Basta lembrar que o Brasil é a sexta economia do mundo, mas apenas o 84º país no índice de desenvolvimento humano (IDH). Os serviços públicos, como os hospitais e transportes urbanos, são muito ruins. Há uma imensa frustração acumulada com o tempo que se gasta para ir ao trabalho em ônibus velhos, caros e superlotados. Com as filas e o péssimo atendimento medido nos hospitais públicos. Com o baixo salário dos professores, a precariedade dos prédios escolares e a péssima qualidade do ensino. Apesar do aumento do consumo, viver nas cidades brasileiras tornou-se um suplício.

Mídia atônita

Por que a imprensa brasileira não pautou antes esses temas sociais? Por que ignorou os sérios problemas urbanos criados a partir da incorporação de uma nova classe média no Brasil? Por que não cobriu com qualidade temas que só as recentes manifestações começam a agendar, como, por exemplo, a composição financeira das passagens de ônibus? Por que só agora sabemos que no Brasil os empresários do transporte urbano arcam com apenas 10% dos custos sociais das passagens enquanto em outros países eles arcam com 30% desses custos?

Por que ficar a reboque e não pautar uma cobertura persistente e qualificada sobe temas como experiências de transporte solidário, economia solidária, experiências de autogestão, de democracia participativa? Boas reportagens sobre as experiências do orçamento participativo, por exemplo, sumiram do noticiário. Se elas não deram certo, a pauta é ainda mais atual.

Experiências de empreendimentos que valorizam o ser humano mais que o capital raramente se tornam notícia na grande mídia. Por que a vida individual e comunitária nos bairros tem uma cobertura tão tímida? A dimensão que as manifestações tomaram no país serve de advertência para a mídia deixar um pouco o extraordinário de lado e voltar-se mais para o mundo ordinário da vida: a vida social é uma excelente pauta para boas histórias. Não só para as editorias de comportamento preocupadas com modismos, mas para todas as editorias dos jornais e revistas: política, economia, cidade, polícia etc. A mídia precisa pautar histórias da vida cotidiana de sujeitos que vivem mal, dormem mal, se deslocam com enormes dificuldades, não encontram atendimento hospitalar digno para suas famílias, só são ouvidos como testemunhas de crimes.

Por que a imprensa não se pergunta, como um ponto de partida de suas coberturas, qual tipo de desenvolvimento queremos para este país? Por que ela não toma a qualidade de vida da população e os direitos humanos como referência primeira para agendar suas coberturas? Queremos um crescimento econômico que nos coloca como sexta economia do mundo, mas apenas em o 84º país em qualidade de vida? Essa disparidade, a meu ver, é a origem principal das arrebatadoras manifestações ocorridas nas últimas semanas. O povo não quer só circo; quer futebol, mas quer também qualidade de vida, humanismo, solidariedade, carinho.

Infelizmente, porém, a grande imprensa nacional parece ter vergonha de pautar essas perguntas capitais. Cega às demandas populares, finge ignorar as profundas mudanças ocorridas em nossa sociedade em nome de uma modernidade consumerista, hedonista e egoísta. É por isso que fica atônita quando a voz do povo se manifesta publicamente. As demandas populares não batem com a agenda da grande imprensa.

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Luiz G. Motta é jornalista, professor titular da Universidade de Brasília e professor visitante da Universidade Federal de Santa Catarina