Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Reordenação em progresso no Brasil

Movimentos contínuos, se expandindo em círculos, hiperestimulados em seus centros (as capitais, centros do território do estado; as vias e praças, artérias e corações da urbe; com os olhos postados nos ocupantes do poder formal). Processos de transformação são expansivos. Das correntezas da internet transformações transbordaram. Partindo de diversos Brasis, multidões foram para as ruas dizer “Não”.

As manifestações que ocuparam as ruas brasileiras no quente inverno de 2013 tiraram o sono de Joseph Blatter, mandatário da Fifa acostumado ao lide com ditadores e monarcas absolutos; das autoridades políticas brasileiras, eleitas num Estado democrático de direito; e da mídia em geral. Ademais, as manifestações tiraram grande parte dos brasileiros do torpor de uma forma tradicional de pensar e definir práticas políticas. Inicialmente algumas dezenas de milhares. Agora, 1 milhão de pessoas nas ruas do Brasil. Qual foi areação do governo brasileiro?

Primeiro, desmoralizar as manifestações. Depois, tentar cooptá-las como triunfo da atual gestão. Agora, medo e incerteza. Contavam com a passividade do povo brasileiro. Será o próximo passo a repressão armada? Os governos municipais e estaduais estão dando mostras nesse sentido. Ministros de estado, governadores, prefeitos. Três níveis de poder político. E no desconhecimento e estupefação diante do que julgavam não apenas improvável, como provavelmente impossível, todos se irmanam na linguagem da violência. A passividade presumida da população foi compartilhada pela grande mídia nas suas abordagens das manifestações.

Sensação de vertigem

As redes de TV estão cobrindo as manifestações que ocuparam o Brasil do mesmo modo que cobrem ações policiais. Por vezes com os mesmos âncoras, apresentadores, bordões dos programas sensacionalistas das tardes da TV brasileira. Esse enquadramento diz muito sobre a expectativa dessas redes de TV a respeito: que haja violência; se possível, dos manifestantes; que legitimam a violência que esses programas narram e legitimam diariamente: elegias da ação policial, em geral violenta.

Numa ânsia segura em tempo real nas vozes e helicópteros dos narradores semioficiais. Se não vier, a violência policial acaba desconfortável para esses âncoras policialescos. É narrada com tensão, com a língua entre os dentes e com dissimulação. Ações policiais não são vocalizadas, são ressabiadas.

A expectativa dos espectadores se tornou mais fragmentada nas últimas semanas. Uma sensação de vertigem – não pelo ineditismo ou escala das manifestações, mas pela abordagem por elas trazida. A própria noção do que é política e de quem dela toma parte (e qual parte) está em jogo durante a Copa das Confederações. Recentemente, numa conferência, ouvi da pesquisadora Annick T.R. Wibben (da Universidade de São Francisco, EUA) uma fala que remeteu às manifestações no Brasil: uma forma de pensar a política é prestar atenção a contestações quando buscamos entender o que está acontecendo.

Impactos dos megagastos

Numa semelhança de família com os governos federal, estaduais e municipais, a mídia inicialmente desdenhou das manifestações. Em seguida, tentou se beneficiar delas como antena transmissora da democracia e como porta-voz da insatisfação popular. Eventualmente se assumiu chocada e atônita. Ao longo dessas modulações, a mídia amplificou as manifestações. Mas também as representou, editou, qual fossem elas (preme)ditadas. Uma rápida passada d’olhos pelas capas das principais revistas brasileiras dá uma dica de como as manifestações foram visibilizadas ou ocultadas. No último quesito, veja-se que a grande maioria dos brasileiros não soube das manifestações contra os mega-gastos da Copa no QG da “família Scolari” em Fortaleza.

As autoridades que ordenaram, na semana do dia 13 de junho de 2013, repressão violenta a manifestações majoritariamente pacíficas recuam. Após tentar desmoralizar manifestações e transformá-las em guerra contra os cidadãos, retoricamente se encastelam, com medo da ação popular nas portas de seus palácios… Estes palácios e monumentos que se tornaram alvos da indignação popular num país que, num curto espaço de tempo, viu tramas palacianas desmantelarem uma série de patrimônios públicos em prol da promoção dos eventos da Fifa (e do COI) – desmantelamento via de regra de forma violenta.

Somando todos os brasileiros que estiveram nas ruas na última semana (e isso inclui brasileiros que se mobilizaram em outros países também) houve mais brasileiros na rua do que pagando à Fifa para ver a Copa das Confederações (os que pagaram ingresso, pois todos os brasileiros estão pagando a conta da Fifa – e reduções no preço das passagens de ônibus não se comparam nem aos montantes, nem aos impactos desses megagastos no curto prazo).

As ruas se tornam a maior arquibancada

É complicado tratar o que está acontecendo no Brasil e nas comunidades brasileiras mundo afora como subproduto da Turquia ou das primaveras (ou levantes, no dizer de Márcio Scalércio) árabes. Há contextos diferentes, demandas diferentes e diferentes relações entre a(s) sociedade(s) civil(is) e o(s) estado(s). Reduzir tudo ao mesmo denominador diminui a complexidade do real e aumenta as páginas de op-eds, jornais e papers, além de ambições proféticas. Não satisfaz como instrumento de investigação e transformação do real. Além de enquadrar prematuramente os manifestantes de hoje no já visto anteontem, reduzindo o escopo do possível.

Há elementos de similaritude no que Guy Standing chamou de “precariado”, termo que conjuga a noção de multidão de Hardt-Negri e o semi-proletariado de Marx e Engels. Desde 2008, o “precariado” substituiu a esquerda trabalhista no cenário da Europa em crise, propagando diversas ações, dentre elas transformando o 1º de Maio num dia de protestos multiformes. No caso europeu, Standing associa o “precariado” com movimentos de trabalhadores cujas condições de trabalho foram precarizadas, jovens desempregados ou que adotam formas de vida não-convencionais, além da importante presença de migrantes e refugiados. A ausência de uma agenda única do “precariado” não impede a contundência de sua crítica e o credencia a construir futuros alternativos. No Brasil, reflexões sobre a composição do movimento de junho de 2013 ainda escasseiam – não podemos assumir essa premissa inocentemente.

Cenas inesperadas de insuspeita criatividade se seguiram. Nem Almodóvar, nem Von Trier, nem Fellini, nem Cronemberg, nem Glauber Rocha. Manifestantes estacionam ônibus biarticulado nas grades do palácio de inverno do governador de São Paulo. O espelho d’água do Congresso Nacional ofuscado pelo teatro de sombras nas cúpulas. A PM mineira protegendo o “perímetro da Fifa” da população em marcha, pacífica, desde o centro da cidade até poucos quilômetros de distância do “novo” estádio do Mineirão. As ruas se tornando, senão a maior arquibancada do Brasil, grandes arenas – precisamente quando as arquibancadas foram sanitizadas e varridas do mapa nas pequenas “arenas” (re, des) construídas a peso de ouro.

Meras reações emocionais/irracionais

O muro de Berlim, diziam, era eterno. Não por sua monumentalidade, mas pela obscenidade que escapava a olho nu – a territorialização do medo característica da Guerra Fria. A queda do muro colaborou para o fim daquela forma de ordenamento social internacional. Não foi um ato isolado, mas seu simbolismo foi multiplicado viralmente por ações não-coordenadas ao largo de todo o Leste Europeu. Uma lógica não estranha por completo a movimentos que se articulam utilizando as tecnologias das redes sociais (as mesmas tecnologias, por sua vez, são utilizadas para vigiar, buscar controlar tais movimentos).

A territorialização associada aos mega-eventos, acompanhada pela repressão de qualquer tipo de questionamento a respeito, começa a cair no Brasil. Subestimar as implicações dessa corrosão para o projeto político do atual governo federal – garantidor e viabilizador dos mega-eventos – seria inusitado.

Você achava que não era possível. Pois é…

É insatisfatório dizer, simplesmente, que havia insatisfações acumuladas e que estas passaram do ponto de fervura na semana passada. Essa postura mantém ontologicamente indefinidas as manifestações, ao passo que as define relacionalmente como meras reações à incompetência do sistema político formal em dar vazão e em concretizar essas demandas (indefinidas). Qual seja, reafirmando a infalibilidade do Estado. Foi este o discurso ouvido nas últimas semanas, em fontes federais, estaduais, municipais e não-oficiais. As manifestações são democráticas; governos são democráticos; manifestações não têm, pois, objetivo plausível e defensável para além da confiança nas autoridades e paciência. São meras reações emocionais/irracionais (em geral, de jovens) a uma conjuntura desfavorável – e no dizer do ministro das Relações Exteriores, reações de uma geração materialmente beneficiada pelas políticas do atual governo.

Definir é um ato político

As manifestações só aumentaram em escopo e veemência desde que as autoridades adotaram esse diapasão discursivo que só produz uma autoimagem do governo como motor exclusivo da transformação – pois tanto a reação dos governos de todos os calibres quanto as manifestações se constituem ações políticas. O discurso da Presidenta e dos ex-presidentes que a precederam remetem a tempos nos quais presidentes “produziam” reações populares nas ruas por seus sucessos e fracassos – os fiscais do Plano Cruzado de Sarney, os cara-pintadas reagindo à convocação patriótica de Collor etc.

A autoridade que quer se autorizar desautorizando o que não compreende (nas palavras do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência) depara com uma forma aparentemente fácil de realizar esse intento: se apropriar de algo que lhe foge ao controle e encaixando novidades num passado nem tão distante. Exatamente por fugirem ao controle dos poderes estabelecidos – e questionar sua autoridade, a tentativa de apascentar o(s) movimento(s) iniciados em 13 de junho de 2013 soa farsesca, bem como analogias com movimentos e simbologias anteriores cedo mostram seus limites. O monolitismo das definições e da tentativa de sintetizar contradições nos símbolos do estado torna ainda mais salutar e valiosa a diversidade, a multiplicidade de movimentos iniciados com um mosaico de “nãos”.

Definir como pacífico um tipo de manifestação (e por analogia, não-pacíficos outros tipos de manifestação) foi um dos lugares-comuns das últimas semanas. Governos, partidos, PMs, movimentos sociais, manifestantes usaram em diferentes contextos essa estratégia (de politização ao legitimar certas demandas como pacíficas e ao estigmatizar outras como não-pacíficas e ilegítimas). Definir é um ato político – implica a redefinição de outros e seus papéis no mundo (no dizer de John Pocock). E esses outros, provavelmente, resistirão a tentativas de serem redefinidos à revelia.

Despesas ineficientes

Tentativas de despolitizar os acontecimentos caem no paroxismo do soerguimento de barreiras. Interromper o fluxo da vida cotidiana – 1 milhão de pessoas toma as ruas, festejos oficiais, eventos esportivos, visitas de mandatários ou intervenções na malha urbana – constitui uma forma de violência simbólica repleta, não despida, de caráter político. Sejam governos ou manifestantes, buscam formas de legitimar essa intervenção violenta no espaço e no tempo – aos olhos dos que não participaram de tais atividades.

Expectativas por um movimento não-político (pois oriundo de uma insatisfação difusa, popular, não “contaminado” pelos aparatos formais de governos, partidos, sindicatos etc.) motivaram resistência e confronto com esses aparatos formais no seio das manifestações – trazendo à tona o caráter político de rotulagem de qualquer tipo de agente – especialmente o que se diz apolítico e o que se diz político em contraposição ao apolítico. Ainda, nada impede que os referidos aparatos mantenham suas possibilidades de transformação – muitos deles, por sinal, construídos em explícita confrontação com os poderes estabelecidos em contextos passados de repressão e violação da democracia.

Em conjunções nem sempre democráticas dos poderes públicos com alguns poderes privados, não sabemos ao certo quais ações contam como ações políticas. Politizar as manifestações, a realização da Copa das Confederações, nos tira da zona de conforto da indeterminação. O aumento das passagens de ônibus – coordenado em escala nacional – foi feito à sombra, não à revelia, da Copa das Confederações e se deu exatamente na semana anterior à realização do megaevento. Essa conjunção forneceu o mote para as primeiras manifestações: transferência de renda em grande volume da população para os cofres dos governos ao passo que bilhões de reais foram dispendidos sem preocupações com justificações com a Fifa – e de forma ineficiente, aos olhos da população que convive com vias interrompidas, remoções forçadas, serviços públicos insuficientes, além dos próprios estádios em finalização a toque de caixa.

A violência não é produtiva

O vácuo criativo das políticas públicas no Brasil foi, no contexto da última década, preenchido pelo nicho dos mega-eventos. É legítimo questionar esse arranjo temporário que deixa permanentes efeitos no espaço urbano e simbólico – pois tal constitui um projeto político, encabeçado pelos últimos governos federais, estaduais e municipais. Aos olhos de muitos brasileiros, os governos estão empenhados em defender o patrimônio, o império da lei e assegurar os direitos e deveres… Da Fifa e dos agentes privados ligados aos megaeventos. É lícito e democraticamente saudável questionar esse projeto político, especialmente quando os agentes públicos não se esforçaram em justificar seus atos e contaram com a apatia generalizada. Tergiversar a respeito, por conveniência política ou futebolística, não diminui a complexidade e a dramaticidade dos acontecimentos.

Ninguém foi às rua “apenas” por 20 ou mais centavos de passagens de ônibus. Pressupor que estejam apenas motivados por restrições materiais é confundir pessoas com caixas registradoras (além de superestimar os centavos e subestimar os bilhões gastos de forma não-responsável, carentes de debate público e controle democrático, com os megaeventos). Motivos para protestar há muitos e os ocupantes dos postos de poder formal sabem muito bem, à medida que enquadram as manifestações como guerra, terror, agressão, anarquia – a linguagem da violência caótica que legitima a violência “exata” do Estado.

A niificação da violência soreliana ou o voluntarismo do poder constituinte negriano nos fazem reféns da luta e nos resignam a ela. Lutar é preciso por inúmeras razões, mas o que é preciso não se esgota no ato de se colocar em contrariedade. A violência contra os agentes do Estado, frequentemente, legitima reações violentas por parte dos próprios. A violência não é produtiva (Arendt, Foucault). No máximo impeditiva. E no mais das vezes, simplesmente violenta.

Questionar o presente se tornou legítimo

A grande vítima das manifestações que levaram um de cada 200 brasileiros às ruas, pois, foi a presunção da recondução “automática” dos atuais ocupantes do poder formal, por inércia ou ausência de alternativas. A inércia, a passividade foram deslegitimadas pelos brasileiros nas grandes cidades do país – ao passo que eram dessacralizados símbolos da inexorabilidade, perenidade e caráter remoto do poder político formal (prefeituras, sedes de governos estaduais, Congresso Nacional, ministérios). Os governos atuais não acabaram, embora haja quem queira nos impingir fins prematuros. O engajamento democrático com contestações não se confunde, não se reduz à rejeição e ao ostracismo.

Em seguida, a realização dos megaeventos no Brasil de 2013 (da forma prevista pela Fifa e por parte dos governos federal, estaduais e municipais) está na berlinda. No dia em que escrevo este artigo (21 de junho), a Fifa ameaçou cancelar a Copa das Confederações com o torneio já tendo realizado metade de seus jogos e superados os gastos previstos em 2007 (atitude que instiga pânico e quer, novamente, desautorizar de forma não-democrática manifestações compatíveis com a Constituição brasileira).

Entre outras possibilidades, a lufada das ruas oxigena a democracia. O que será feito com ela preenche o porvir de possibilidade. Aumentar o limite do possível se tornou novamente possível. Questionar o presente se tornou legítimo. Impedir retrocessos por demais conhecidos, idem.

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Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, pesquisador do CNPq e autor de Modernity at Risk: Complex Emergencies, Humanitarianism, Sovereignty(2012), Lambert Publishing (com Jana Tabak Chor)