Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ninguém sabe em que vai dar

Escrevo antes deste domingo [23/6] e, portanto, pode haver acontecido alguma coisa, ou muita coisa, que invalide o que penso agora. Mas não creio muito nisto, porque praticamente todos, inclusive comentaristas especializados e experientes, se mostram aturdidos, quase tontos, com as manifestações de protesto por todo o país. Não sou exceção à perplexidade geral e tampouco sei responder às perguntas que se oferecem. Como se iniciaram as manifestações, onde foram concebidas, por que de repente multidões saíram às ruas para reclamar e reivindicar? Que lideranças estarão ocultas, interessa a alguém o que vem sucedendo, beneficia algum grupo? O momento terá sido escolhido ou deflagrou-se um movimento espontâneo, que fugiu do controle de quem quer que o tenha organizado? De agora em diante, fazendo-se um retrospecto, talvez as respostas se esbocem, mas, no momento, elas parecem desconhecidas.

Mas uma coisa ali e outra acolá, mesmo que meio na base do palpite, podem ser observadas agora mesmo. As categorias que vemos empregadas por muitos analistas e que nós próprios usamos talvez estejam cada vez mais obsoletas. Não me refiro aos saudosos tempos em que o panorama era bom para todo mundo. Havia o ouro de Moscou e as ideologias exóticas para culpar por qualquer agitação e volta e meia um severo general emitia uma ordem do dia em que fazia uma advertência à Nação. O imperialismo ianque, por seu turno, era o responsável por tudo o de medonho sobre a face da Terra, das secas no Nordeste às derrotas da Seleção. Isso parece que sumiu, mas ainda usamos um arsenal conceitual inadequado.

Carne e osso

Esquerda e direita, notadamente no Brasil, são como o conto de Mário de Andrade, quer disse que conto é tudo aquilo que se chama conto. Esquerda aqui é tudo aquilo que se chama esquerda e direita é tudo o que se chama direita, não fazem nenhum sentido prático e são uma salada de enganações, farsas, meias verdades, vigarices e ignorância mesmo. Elite, nem se fala, e até virou sinônimo, em nosso caso grotesco, de oposição. Os partidos políticos não querem dizer nada e seus programas de televisão são um desfile obsceno de inanidades genéricas, em que todos se manifestam a favor da justiça social, de melhor educação, melhor saúde e mais um farto e invariável bolodório, mas nenhum diz como chegar lá. Se alguém der a ousadia de indagar aos partidos se concordam com aquilo por que clamam os manifestantes, todos eles vão assentir, não só porque são reivindicações tão genéricas que não oferecem risco e apenas suscitam as promessas fajutas de sempre, como porque as diferenças entre eles são apenas os nomes dos que se locupletam.

Os estudos sobre liderança e movimentação de massas depois do celular e da internet ainda estão por ser feitos. Eu mesmo – lá se vai outra revelação em primeira mão e tremo ao fazê-la, porque sou do tempo em que isso dava cana – ajudei a organizar e coordenar, já faz alguns anos, uma passeata contra a insegurança em Itaparica, do Rio e falando pelo Skype para os celulares de meu amigo Beto Atlântico e minha prima Bete Saldanha, que comandavam as ações no front. Participei de tudo e a passeata foi um sucesso, houve até visita do governador e mudança de delegado. Muita gente escreve bobagens apressadas sobre o papel das redes sociais, porque ainda é cedo para avaliá-lo completamente, mas essas redes e a internet em geral introduziram novidades que todo mundo já sentiu e cujas consequências mal começamos a ver.

A organização simultânea de manifestações pelo mundo afora é temível para os poderosos. Estou acostumado a perguntas de estrangeiros sobre o Brasil. Mesmo se muito interessados, querem explicações sucintas, quando a gente sabe que nem mesmo nós conhecemos essas explicações. A maior parte das perguntas requereria um seminário especial. Mas as manifestações de rua, reunindo o que, para cidades estrangeiras, é muita gente, são bem mais poderosas. Não há artigo de jornal com a mesma força e razão assiste à Presidente, quando, além de se preocupar com os acontecimentos internos, busca preservar a imagem de uma democracia próspera, estabelecida ao longo de anos e agora cada vez mais ameaçada, por inflação, insegurança, corrupção e serviços públicos execráveis. Nada substitui a visão de gente de carne e osso protestando nas ruas, gente que pode ser mobilizada em horas e é capaz de tecer uma cadeia de ações de que não podemos nem suspeitar agora.

Boa paranoia

Não há como prever o que vai acontecer. As manifestações podem ter sido fumarolas de um vulcãozinho por tradição comodista e resignado, mas também podem não ter sido. Qualquer evento de alguma repercussão pode afetar o rumo da situação. Quando se trata de multidões, um estudioso dirá que não se espere racionalidade. Besteira achar que as manifestações continuarão sem que haja depredações e saques. Há saques até quando um caminhão carregado tomba na avenida Brasil, quanto mais numa situação de tumulto generalizado. Para não falar nos ladrões habituais mesmo, que procurarão aproveitar as oportunidades profissionais oferecidas.

Para finalizar, peço vênia para não deixar de tocar no assunto sobre o qual tencionava inicialmente escrever hoje. É que o Congresso Nacional vai votar o infame projeto conhecido como PEC 37, emenda constitucional que retira do Ministério Público a atribuição de investigar crimes. Trata-se de um retrocesso absurdo, que só beneficia a delinquência, a prevaricação e a impunidade. Manda a boa paranoia acolher a suspeita, ainda que tênue, de que alguém quer distrair-nos para, enquanto atentamos nas passeatas, tungar-nos mais uma vez. Ia dizer que devemos combater essa emenda, embora ela não tenha a ver com as manifestações. Mas tem, claro que tem, tomara que tenha.

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João Ubaldo Ribeiro é jornalista e escritor