Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O aborto e os preconceitos da imprensa

É surpreendente a timidez (ou seria melhor dizer descaso, insensibilidade?) da imprensa ao tratar assuntos como controle da natalidade e aborto. Na semana passada, quando o ministro da Saúde se declarou favorável à descriminalização do aborto, a imprensa poderia ter se posicionado sobre o tema ou, pelo menos, aproveitado a oportunidade para iniciar o debate com a sociedade. Mas, infelizmente, não foi o que se viu nos grandes jornais e revistas semanais. Mais uma vez a imprensa limitou-se a registrar a fala do ministro e os protestos que ele enfrentou em Fortaleza.

E nem se pode dizer que a imprensa não tenha acesso a informações sobre o assunto. Informações sobre aborto são divulgadas pelo próprio governo através da Agência Brasil, da Radiobrás:

** De acordo como o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de óbito materno no país e a curetagem (coleta de restos de tecidos do útero) é o segundo procedimento obstétrico mais praticado nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), superado apenas pelos partos. Além disso, em 2004, cerca de 244 mil mulheres foram atendidas para fazer curetagem ou tratar infecções pós-aborto (Agência Brasil).

** Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), metade das gestações são indesejadas e uma em cada nove mulheres recorre ao abortamento. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, 31% das gestações terminam dessa maneira. São cerca de 1,44 milhão de abortamentos espontâneos ou provocados.

Fertilidade alta e desigualdade

Se as informações estão disponíveis e o assunto renderia boa leitura, por que o descaso da imprensa? Medo de chocar os leitores, ofender a Igreja ou descaso porque hoje o aborto clandestino – esse que provoca a morte de mulheres – atinge apenas as camadas mais pobres da população? Todo mundo sabe – e principalmente a mídia – que as mulheres (e adolescentes) de classe média também evitam gravidez. Mas, como têm dinheiro para comprar anticoncepcionais e condições de consultar um médico, dificilmente acabarão na fila do SUS, vítimas de um aborto mal feito.

Se o plebiscito sobre o aborto for aprovado, vai ser interessante acompanhar a postura da imprensa sobre o assunto. Porque, para fazer o seu papel de esclarecer a população, terá que ir muito além de abrir espaço para os argumentos a favor e contra o aborto. Será preciso mostrar o verdadeiro problema dos abortos clandestinos e das mulheres que são obrigadas a essa perigosa prática.

Em seu artigo na Folha de S. Paulo de domingo (‘Tal qual avestruzes’, 15/04/2007), Draúzio Varella escreve:

‘O direito de escolher quando engravidar é crucial para a autonomia feminina. Meninas de escolaridade baixa tendem a casar mais cedo e a ter mais filhos, criando um ciclo perverso de fertilidade alta e desigualdade sexual. O acesso à contracepção reduz a mortalidade materna porque reduz o número de gestações e de abortamentos realizados em condições precárias.’

Mulheres sem opção

Na opinião da professora Carmen Barroso, diretora da Federação Internacional de Planejamento Familiar, com sede em Nova York, se houver plebiscito sobre o aborto – embora com poucas chances de aprovação – vai começar o debate público sobre o assunto.

Um debate necessário e que talvez sirva para mostrar a urgência de uma efetiva política de planejamento familiar no país. A política de planejamento existe, mas, segundo Carmen Barroso, nunca chegou a se consolidar: ‘As mulheres que mais necessitam dele são pobres. Não têm voz. Dentre elas, as mais prejudicadas são as jovens. Sofrem porque não têm recursos, nem acesso aos métodos anticoncepcionais, nem traquejo para negociar com seus parceiros. É claro que o planejamento familiar está acontecendo no Brasil, através do SUS. Mas o grande obstáculo à sua consolidação é a vulnerabilidade da mulher pobre.’

Um debate amplo, entretanto, não precisaria esperar um plebiscito. Poderia ter sido motivado pela imprensa, ouvindo toda a sociedade e não apenas a igreja, as feministas e intelectuais a favor ou contra aborto e planejamento familiar. Poderia ter sido motivado comovendo o público com a história das mulheres que não têm opção a não ser evitar a gravidez apelando para procedimentos inseguros.

Se vier o plebiscito, vamos esperar que a imprensa lembre que, caso o planejamento familiar não fosse tão incipiente, talvez nem precisássemos discutir a legalização do aborto.

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Jornalista