Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como a Globo driblou a crise

A instabilidade econômica que se instalou nos EUA a partir da crise imobiliária de 2004 e detonou a economia da Europa de 2009 para cá foi suficiente para servir de alerta ao maior conglomerado ou multinacional de comunicações do Brasil, a Rede Globo: com logística e planejamento estratégico, ela conseguiu driblá-la desde o começo do ano. Hoje a crise se alastra e domina a mídia impressa, radiofônica e televisiva nacional.

Entre as exigências implementadas para a imunização da Rede Globo dos efeitos predatórios e recessivos da crise está a diminuição do lucro das emissoras reprodutoras e a transferência simultânea respectiva do seu faturamento estadual para a central Globo, cujo repasse obedece a taxas negociadas, uma a uma, com as emissoras integrantes da rede, segundo confidenciou uma fonte cuja identificação não foi autorizada.

Em qualquer outro setor econômico, essas manobras político-administrativas caracterizariam o nascimento de um oligopólio (monopólio ampliado), que seria logo investigado e detonado pelo Cade, mas nem de longe isso passa pela cabeça do governo nem do Congresso Nacional: quem ousa mexer com a Rede Globo? A intocabilidade política é sua marca desde o começo.

Alterações foram diplomaticamente negociadas

A publicação deste artigo expõe seu autor a riscos enormes, a abalos sísmicos semelhantes aos registrados em 1977 quando assinou quatro artigos para a Folha de S.Paulocriticando as falhas do Plano Nacional de Desenvolvimento imposto ao país pela ditadura durante 13 anos seguidos, a cartilha dos todo-poderosos ministros do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, e da Fazenda, Antonio Delfim Neto.

O efeito negativo dessa operação para as emissoras da rede individualmente foi a redução do lucro das emissoras locais e uma relativa perda de autonomia política-administrativa sobre uma vasta clientela nacional atraída mais pela programação nacional do que local. A Rede Globo tem se recusado terminantemente a sentar à mesa com os outros membros do setor para discutir a regulação midiática. No governo Lula até que se tentou, mas a tentativa foi absolutamente frustrada pelo desinteresse da Globo.

A parte positiva do acordo da administração do conglomerado com as emissoras locais para a central Globo foi seu fortalecimento interno, uma melhor conexão das realidades das agências de publicidade e do noticiário locais com a programação nacional através do portal G1, onde são arquivadas as notícias locais que passam a ser acessadas pela audiência internacional da emissora-sede. Essas alterações foram diplomaticamente negociadas em silêncio sepulcral durante seis meses entre a administração central da Globo e cada uma das suas filiadas.

Fechamento do JTe emagrecimento do Estadão

A sinalização antecipada da crise do capitalismo nas economias centrais não foi uma confidencia de nenhum órgão de informação porque ficou perceptível a qualquer analista de macroeconomia internacional desde o momento de sua eclosão no setor imobiliário dos EUA.(Mas o governo brasileiro, usando a mesma tática da ditadura, usou a Rede Globo para convencer a população, espalhando que a crise não atingiria a economia brasileira – lembra-se? –, salva graças ao seu grande superávit primário, a inflação não voltaria etc.

A instabilidade econômica, com seu agravamento cambial, levou o governo Barack Obama a fazer uma emissão de dólar nunca vista antes de uma só vez para evitar a repetição da crise de 1929, provocando um déficit fiscal num patamar superior a 50 % do PIB dos EUA. Já no segundo mandato presidencial. Isso colocou seu governo politicamente nas mãos dos republicanos.

Como os orientadores do sistema Globo, a multinacional de comunicações que disputa hoje a primazia no mercado planetário com qualquer grupo de mídia, perceberam de longe que a crise não era pontual nem passageira, aceleraram as mudanças no modus operandida rede. Logística e planejamento estratégico passaram a ser as palavras de ordem. Os componentes da rede compreenderam logo, alguns com certa relutância: é melhor perder os anéis ou os dedos? Todos compreenderam: vamos diminuir os lucros para preservar os dedos e os anéis. Todos foram salvos até agora do naufrágio geral do setor a começar pelo grupo da família Mesquita, que mesmo antes da morte do diretor-jornalista Rui Mesquita já havia começado a desmontar sua arquitetura jornalística com o fechamento do Jornal da Tardee o emagrecimento do jornalão O Estado de S. Paulo, que tantas dores de cabeça causou ao regime do generalato com a publicação de receitas de bolo ao lado de poemas inteiros do clássico português Lusíadas, de Camões.

Um desastre educacional vergonhoso

Se há um negócio político no Brasil onde os líderes sobreviventes da ditadura militar de 1964 podem buscar estímulos para se orgulhar é a rede Globo. Por confiar no tino político-comunicacional e artístico de Roberto Marinho, a ditadura investiu maciçamente nos planos dele. Quem conhece detalhes disso é hoje diretor deste Observatório da Imprensa, o notável jornalista Alberto Dines, que não aceitou o convite de Marinho para comandar seu conglomerado a partir do Rio de Janeiro porque já havia assumido o compromisso de editar e dirigir o Jornal do Brasil, de onde passou a participar dos pegas com o diretor do JB, empresário Nascimento Brito, com quem, aliás, nem falava: o intermediário entre os dois era o então governador Chagas Freitas, dono do jornal O Dia.

Até hoje, os temas que podem ferir a sensibilidade dos remanescentes do golpe militar ou a imagem dos seus principais líderes são simplesmente poupados, omitidos no noticiário jornalístico da emissora. O preço foi, é e continua sendo alto. Preço aparentemente compensado pela audiência massiva do sistema de rádio e TV e pela imunidade à crise do seu principal jornal, O Globo.

Por isso, chega a ser paradoxal, contraditório e lacônico quando apresentadores leem textos ou comentam no jornalismo sobre a necessidade de melhorias na educação brasileira num espaço midiático onde o ensino/aprendizagem para a liberdade e cidadania nunca tiveram espaço. Por exemplo: exilado em 1965 para não ser assassinado pela ditadura, o professor Paulo Freire retornou ao Brasil após a Constituinte de 1988, morreu em São Paulo logo depois, mas nunca os veículos de comunicação dos Marinho mencionaram sequer o método revolucionário de ensino-aprendizagem dele – a educação para a liberdade e cidadania.

A utilização do método construtivista pela ditadura é respeitada até hoje, com sua manutenção, resultando nesse desastre educacional vergonhoso: a nona potência econômica mundial com 23 milhões de analfabetos de nascença e 27 milhões de analfabetos funcionais (já foi alfabetizado, mas a falta da prática de ler e escrever fez o analfabetismo regressar).

******

Reinaldo Cabral é jornalista e escritor