O governo petista comemora sinais de que os partidos aliados apoiariam uma consulta popular sobre a reforma política e a possibilidade de que parte da oposição acabe aderindo à proposta, por causa da pressão das ruas. O britânico Financial Times chama o Partido dos Trabalhadores de “oportunista”, por levantar a tese da taxação de fortunas. Enquanto isso, vão saindo da pauta as questões periféricas ao núcleo dos protestos, como o projeto da “cura gay”, a proposta de emenda constitucional nº 37, que poucos entenderam mas muitos condenaram, e adiam-se aumentos de tarifas e pedágios.
Mas segue no ar o cheiro da revolta, que, embora informada por ideias de mudança, não parece se sustentar sobre as teorias políticas que fizeram as bases de movimentos relevantes no passado.
Mesmo que não se possa afirmar que vivemos uma "pós-modernidade", ou, ainda, que testemunhamos o "pós-História", como querem alguns, chega perto quem identificar o desaparecimento das revoluções sistêmicas que marcaram os últimos duzentos anos. Há uma fragmentação das motivações, mas o resultado do pensamento não conformista ainda é uma ação política efetiva e impactante.
Aparentemente, muitos dos analistas acreditados pela imprensa têm dificuldade para enquadrar o fenômeno das manifestações, assim como o Financial Times não consegue ir além dos dogmas do credo liberal para imaginar de onde pode sair pelo menos uma parte do dinheiro necessário para atender as reivindicações das ruas.
Não se pode condenar uma proposta de taxação de grandes fortunas sem considerar certos aspectos da sociedade brasileira, principalmente o histórico das diferenças de renda e oportunidades; mas mesmo a imprensa nacional, que opera no contexto dessa sociedade desigual, costuma se valer desse olhar plano sobre o cenário de vales e montanhas para justificar que nada seja mudado.
Acontece que não existe a possibilidade desse "nada".
O estado dos debates não permite afirmar que é possível ou mesmo conveniente taxar o patrimônio privado a partir de determinado montante, além do que é feito segundo as normas atuais da Receita Federal, mas pode-se prever que, se não forem atendidas as pautas centrais que motivam os protestos, não haverá ganhadores ao final da contenda.
Uma no cravo, uma no dedo
Ainda que não haja teorias prontas, claras o suficiente para auxiliar os analistas dispostos a compreender os fatos recentes – e não interessados em apenas interpretar esses acontecimentos –, pode-se fazer uma aproximação interessante no calor dos eventos, como se exige do jornalista. Basta lembrar o básico da filosofia clássica, observando-se aquilo que transparece dos fenômenos, ou seja, todos os elementos compreensíveis da realidade.
Há um conjunto de razões declaradas, que conduziram às decisões recentes dos governantes, e há também as motivações implícitas, que, apesar de não verbalizadas, também podem ser observadas.
Entre esses haverá certamente alguns ou muitos dos que têm participado até agora do festim no interior das instituições públicas, que não estão habituados a prestar contas – ou melhor – que só prestam contas no âmbito vicioso das próprias instituições. Esse é o contexto do jogo de toma-lá-dá-cá, ou, como na frase que celebrizou o falecido deputado Roberto Cardoso Alves, a regra segundo a qual "é dando que se recebe".
As instituições republicanas parecem ter despertado de sua alienação, e uma aparente disposição para levar adiante a reforma política seria o sinal mais claro de que alguma coisa se move no interior do sistema.
Essa reforma deveria produzir uma ruptura na parede que separa essas instituições da sociedade, reanimando o jogo democrático. O noticiário dos jornais indica que tanto a imprensa quanto as autoridades ainda não sabem o lugar certo onde colocar seus desejos, e certamente seguirão dando uma no cravo, outra na ferradura, e eventualmente outra no próprio dedo.
Mas é assim mesmo que se aprende a compreender o novo.