Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Relembrando as palavras de um constituinte

No próximo dia 5 de outubro de 2013, a Constituição Federal promulgada em 1988 completará 25 primaveras [segundo o Cptec – Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, vinculado ao Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (que por sua vez é ligado ao MCTI – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), a Primavera se iniciará às 17h44 do dia 22 de setembro de 2013 e se encerrará às 14h11 do dia 21 de dezembro de 2013, quando terá início o verão; ver aqui].

[A Constituição] foi alterada (pelo menos até a feitura destas linhas) 73 vezes por meio de Emendas Constitucionais. Seria cair em um lugar vazio afirmar demasiada atividade interventiva, mas a metáfora possível seria a de um jovem adulto com o rosto límpido e que fizera 73 aplicações de “botox” ou 73 plásticas “corpóreo-faciais”. Contudo, quer nos parecer que a metáfora mais importante sobre a Constituição Federal de 1988 foi aquela que o congressista constituinte, o então senador Leite Chaves, cunhou durante os dias finais de debates – às vésperas da promulgação do texto constitucional em outubro de 1988.

A referida metáfora, publicada na prestigiosa Revista de Informação Legislativa [CHAVES, Leite. A nova Constituição e sua contradição ideológica. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 25, nº 100, out./dez. 1988] afirma que a Constituição Federal em vias de vir ao mundo (pelo canal vaginal ou mediante cesariana?) após os debates constituintes representaria uma “bomba-relógio de grande poder explosivo”.

Em suas palavras:

“Estamos ultimando a Constituição, mas não resolvemos o grande impasse da concentração de renda. O Brasil continuará a pertencer aos 5% da população detentora de 50% da renda nacional. Nenhum país no mundo oferece esses índices e é exatamente aí que repousa a bomba-relógio de grande poder explosivo colocada no contexto da constituição que está por sair. (…)

Na parte econômica foram mantidos todos os privilégios que nenhum país capitalista ousou permitir; na parte social concedemos vantagens e direitos que nem os mais avançados países socialistas estão capacitados a dar. (…)

Nem o Legislativo nem o Executivo têm condições de, em curto prazo, dar cumprimento a essa tarefa regulamentadora. O Judiciário passará a ser sacudido pela exigibilidade formalizada desses novos direitos.”

Contudo, sobre o Poder Judiciário, há as seguintes e importantes reflexões de Calmom de Passos:

“O Poder Judiciário só pode atuar a nível micro e nestes termos seu agir se assemelha à esmola que antigamente se dava, toda sexta-feira ou sábado, não me lembro bem, aos mendigos que batiam a nossa porta: um pãozinho de Santo Antônio e uma xícara de farinha. Engana a fome, mas não elimina a mendicância” [CALMOM DE PASSOS, J.J. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 63].

“Linguagem é poesia fóssil”

Impossível não mencionar os atuais eventos que sacodem o país de norte a sul e que tiveram início por conta do aumento das passagens de ônibus e que ganharam corpo durante a realização da Copa das Confederações da Fifa em 2013. Seria o “tic-tac” mais eloquente da suposta “bomba-relógio” a que se referia o ilustre senador Constituinte durante estes quase 25 anos de Constituição?

O Observatório da Imprensa contabiliza cerca de 30 artigos sobre tais eventos em menos de duas semanas de protestos [basta acessar a primeira página do Observatório da Imprensa, parte inferior sobre a primeira rubrica “Protestos Urbanos” da página: http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/], e no Consultor Jurídico também temos muitas linhas escritas por diferentes subscritores sobre diversos pontos que podem ter tisnado os motivos dos “protestos urbanos” como os artigos do promotor Luciano Ávila sobre as opções políticas governamentais sobre os gastos com o Estádio Nacional de Brasília (Mané Garrincha) [são dois os artigos: (1): “Estádio Mané Garrincha é falta de zelo com gasto público” e (2): “Privilégios do DF não viram serviços de qualidade”], passando pelo sensacional constructo dos “18 dizem por aí” de André Karam Trindade [“Diário de Classe: A copa das manifestações e o que ‘dizem por aí’”] ou ainda pela fantástica reflexão de Saul Tourinho sobre “aqueles que se afastam de Omelas [“Falsa felicidade: Custo para sediar Copa do Mundo é alto demais”].

Todas são reflexões bastante importantes.

Aquela que nos impele neste momento perpassa pelas 25 primaveras da Carta Magna de 1988 e sua metafórica expressão como “bomba-relógio de grande poder explosivo”, especialmente quando observamos com Borges que “linguagem é poesia fóssil” e que “todas as palavras abstratas são, de fato, metáforas, inclusive a palavras metáfora que em grego significa translação” [BORGES, Jorge Luis. Ars Magna, em: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas III, São Paulo: Globo, 1999, p 495].

“Teatro das sombras”

Nesta perspectiva, quem ou o que seria (se é que de fato haveria algum ou alguém) o detonador de tão delicado artefato explosivo? Ou ainda, quem ou o que (se é que de fato haveria algum ou alguém) estaria apto a “desarmar” o contador do relógio com vistas a evitar uma “explosão constitucional”? O Parlamento? O STF? O Executivo ou os militares? Os grupos de pressão da sociedade civil organizada? O Ministério Público? A OAB? O cidadão?

Inescapável o chiste da loucura humana, referente à tentativa de controlar o relógio e assim o tempo, sendo pelo menos minimamente significativo o fato de que durante os debates da Constituição oriunda da Constituinte de 1967 em termos de debates meramente protocolares em que o AI 4 dava ao Congresso o prazo certo e determinado para que aprovasse a Constituição sob pena de aprovação compulsória, o Congresso atrasou os relógios da casa no afã de cumprir o prazo imposto [Carlos Chagas descreve o período em que a Constituinte tinha até o dia 17 de janeiro de 1967 para aprovar e “debater” a Constituição, sob pena de aprovação compulsória do “projeto Constituinte” genuinamente puro sangue da ditadura militar: “Os dias passaram com pressa olímpica, mas fazer uma Constituição demanda tempo. E tempo acabou não havendo. Na manhã do dia 17 de janeiro, Auro de Moura Andrade reuniu os líderes e lamentou o esforço para ele perdido. Tinha passado a noite fazendo contas e verificou que faltavam ser votados alguns capítulos. O prazo dado pelo palácio do Planalto terminaria à meia-noite e, pelos seus cálculos, seria impossível votar tudo. O desânimo tomou conta dos liberais quando o matreiro senador paulista completou: “Mas eu tenho uma solução, se vocês me apoiarem.” Diante da concordância, acionou a campainha chamando o chefe dos contínuos, perguntando-lhe: “José, que horas são?” “São nove horas da manhã, Excelência.” “O senhor está maluco? Não está vendo que são nove horas da noite de ontem?” “São as horas que o senhor quiser, Excelência.” “Então vá lá no plenário e atrase todos os relógios em doze horas…” Ninguém protestou e a Constituição de 1967 foi votada no tempo exato da exigência contida no AI-4. Muita gente perguntou e ainda pergunta como os militares aceitaram aquela fraude democrática, em especial o presidente Castello Branco, que além dos microfones ligados com o Congresso, dispunha de montes de espiões assistindo à Constituinte. Atribui-se a ele um comentário, quando o primeiro dos auxiliares, o general Golbery do Couto e Silva, informou sobre o atraso de doze horas nos relógios: “Deixe ficar assim. Afinal, o projeto deles é muito melhor do que o meu…” Carlos Chagas – “A Constituinte atrasou o relógio para cumprir o seu dever”].

Vale recordar que às vésperas da transição da Monarquia para República os militares e muitos civis tomaram as rédeas da construção histórica em suas mãos naquilo que José Murilo de Carvalho chamaria algum tempo depois de “a construção da ordem” e de “teatro das sombras [CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial/Teatro das sombras: a política imperial. 5ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010]”; importante também a observação dos eventos políticos que estiveram cercando a ditadura varguista de 1937 (especialmente com a Polaca) e a ditadura militarista de 1964 (especialmente com o AI nº 5 de 68).

Não existem heróis e esta seria, aliás, uma boa crença.

Ecos similares aos de explosões

Vale recordar que no Império vários ministros do Supremo foram aposentados e o presidente da Corte, Barão de Montserrat, pedira demissão da presidência, por terem os Ministros da mais alta Corte decidido contrariamente aos interesses da amante do Imperador Pedro II, a condessa de Barral, ou ainda a aposentadoria por Decreto de Vargas, de seis ministros do STF durante a revolução de 1930, ou ainda a aposentadoria compulsória ou negociada de 5 Ministros do STF em 1968/69 após o AI nº 5 (Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Lafayette de Andrada e Gonçalves de Oliveira) [SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 400].

Não parece ser momento de oportunistas e nem de tentativas de nova Constituinte mas parece ser importante refletir sobre um dos aspectos importantes da metáfora que leva a não explosão e a não destruição, e sobre este ponto Calmom de Passos, de saudosa memória e jurista de primeira linha e de grande valor nos diz que:

“a ineliminável imbricação entre economia, direito, política e ideologia nos leva a concluir: se a economia é inviável sem a política e se ambas são ineficazes sem o direito e sem a ideologia, aqui estão as quatro paredes de nossa cela, um misto de espaço para monges ou para delinquentes” [CALMOM DE PASSOS, J.J. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: Juspodivm, P. 44].

Curiosa e reflexiva construção. A bomba existiria dentro desta cela. As ruas estão tomadas… ouvem-se ecos similares aos de explosões. Não se sabe se já representa a explosão antevista em 1988 pelo congressista constituinte Leite Chaves, mas leva a construção não tão contundente e nem muito menos brilhante e habilidosa como as que foram referidas, mas a imagem que passa a se divisar a partir de suas reflexões.

O perigo é que a bomba exploda

A pretexto de tentar desarmar a bomba para defender a Lei Fundamental, acaba-se dela se servindo, num verdadeiro banquete praticamente autofágico, o qual Martí chamaria de um novo banquete de tiranos, em que se acaba por palitar os dentes com os ossos da própria Constituição, transformando-a em lembrança do que antes era esqueleto, sangue, carne e espírito.

Exceto se este momento for aproveitado para se debater e exercer um novo modelo de democracia, do povo, pelo povo e para o povo (de fato quase um clichê), paradoxalmente sem que se caia em um populismo vazio, com respeito aos direitos das maiorias e das minorias, garantindo-se a livre iniciativa e também os direitos sociais, exatamente os fios vermelhos e azuis que integram o dispositivo explosivo.

O perigo é que durante os debates a bomba exploda em nossas faces, pois não se poderia atrasar o contador do relógio como em outros tempos. Enquanto isso, se repete a cena: Gollum pergunta ao Hobbit “Bilbo Bolseiro”:

“Essa é a coisa que a tudo devora/ Feras, aves, plantas, flora./ Aço e ferro são sua comida,/ E a dura pedra por ele moída;/ Aos reis abate, à cidade arruína,/ E a alta montanha faz pequenina [TOLKIEN. O Hobbit].”

Mas a pergunta bem que poderia ser: quem controla o anel que a todos controla?

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Thiago Santos Aguiar de Pádua é advogado, Brasília, DF