Ao dar à tecnologia um espírito vago, impessoal, o que move a sociedade é uma desculpa esfarrapada
E não é aquele do Facebook. Do Google+. Do Instagram. Dos games. Do WhatsApp. Nem de todas essas redes, e outras tantas, combinadas. Morando sozinho ou se isolando por trás das telas brilhantes de smartphones, tablets, PCs e notebooks, falando pelo Twitter o que não teria coragem de dizer ao vivo, multiplicado por diversos perfis e avatares, você ainda é um só.
Você, que acumula objetos de uso questionável e contribui para a formação do lixo eletrônico ao mesmo tempo que reclama da poluição e da exploração do planeta.
Você, que faz passeata contra a corrupção enquanto compra notas frias. Que critica o tráfico ao mesmo tempo em que o financia, que reclama do preço do ônibus, mas não deixa o carro nem para ir até a padaria. E que, uma vez nele, não respeita faixa, deficiente, idoso ou limite de velocidade e fala ao celular enquanto guia.
Você que, via redes sociais, se orgulha de ter atingido uma fusão entre intimidade e distância, quando o máximo que fundiu foi a ilusão de ambas. Sua comunidade se transformou em um mecanismo terceirizado de autoimagem, ao mesmo tempo vaidoso e inseguro, preguiçoso e ansioso, otimista e pragmático.
Um só
Imerso na rede, você criou um reflexo psicológico em que precisa saber de tudo no mesmo momento, posicionando-se o quanto antes, já que cada atualização diz mais respeito à opinião dos outros do que ao que você realmente pensa.
Fascinado pela ideia de se transformar em veículo de informação, você parece ter se esquecido (ou deixado de se importar) que só haverá meios se houver mensagens. E que ao reproduzir sem pensar o que ouve dos outros, não gera mais do que microfonia.
Não adianta se esconder nem tentar desafiar seus ritmos biológicos na vã tentativa de acompanhar o mundo simbólico em que vive, evitando qualquer contato com a realidade. O máximo que conseguirá é confundir seus mapas com o território que representam.
Você acha que é diferente e, no entanto, é igualzinho aos que critica. Não espanta que espere cada vez mais da tecnologia e cada vez menos das pessoas.
É inegável, você está só. Sua solidão não foi criada pelo mundo digital, mas por suas ações esquizofrênicas. Não adianta mais colocar a sociedade na terceira pessoa, tentando se isentar de qualquer responsabilidade. O mundo “real” tem muito de virtual. E vice-versa. É uma relação simbiótica.
Mas conexão não é o mesmo do que vínculo. O budismo (o de verdade, não essa onda chamada de “sabedoria 2.0”, em que a meditação é uma espécie de videogame contemplativo) ensina que todos estão interconectados. Que os desafios reais não estão no futuro, mas bem à nossa frente. E que o apego aos bens e às ideias pode ser muito prejudicial.
Ao dar à tecnologia um espírito vago, impessoal, o que move a sociedade é uma desculpa esfarrapada. Fruto de um sistema capitalista, a única resposta que a tecnologia pode trazer é mais tecnologia. Ela é só uma ferramenta, não há consciência nela. Tudo que ela faz é fruto de ideias de gente como você.
Por mais que você ache, como Mário de Andrade, que é trezentos, que é trezentos e cinquenta, não se iluda. Como ele, você é um só. E ainda terá que topar consigo e prestar contas com seu legado.
Apesar de você, diz a música, amanhã há de ser outro dia.
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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e colunista da Folha de S.Paulo; mantém o blog www.luli.com.br