Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que falamos como falamos?

É notório que a língua dos falantes do português do Brasil (PB), excetuada a de poucos profissionais em situação bastante monitorada, é bastante diferente do português de Portugal (PE, de europeu). Estou simplificando, é claro, porque nem todos os portugueses falam do mesmo modo, e o mesmo ocorre com os brasileiros.

Mas estamos longe do velho clichê que reduzia as diferenças ao léxico e ao infinitivo deles no lugar do nosso gerúndio (estou a cantar, estou cantando). A realidade é bem mais complexa, e começa a ser mais bem conhecida.

Uma das teses sobre a relação do PB com o PE é que as diferenças se deveriam a um emprego mais frequente no Brasil de construções dialetais raras em Portugal. Sendo assim, a diferença se explicaria por uma deriva mais ou menos comum. Se a tese estiver correta, falaríamos simplesmente uma língua neolatina.

Alguns casos parecem confirmar essa teoria, especialmente alguns fenômenos fonológicos (paiaço por palhaço lembra uma deriva do francês e do espanhol, por exemplo), mas também casos como os peixe por os peixes, uma das marcas estruturais do francês (que a escrita não nos engane).

Mas há fenômenos, especialmente sintáticos, que não podem ser explicados por essa via, porque os falantes de PE os acham estranhos e não os empregam. Um dos mais esclarecedores é o da concordância locativa.

Raízes africanas

Trabalho de Juanito Avelar e Charlotte Galves, já apresentado em congressos e em vias de ser publicado, organiza as diversas hipóteses sobre a questão e apresenta fatos que, embora não eliminem a possibilidade de o PB ser uma variante do PE (mais ‘avançada’ em certos casos), certamente não podem ser explicados por ela. Podem, no entanto, ser explicados por outra hipótese, a de que o PB recebeu forte influência de línguas africanas, especialmente das línguas bantas, já que algumas estruturas estão igualmente presentes em nossa língua e em línguas africanas.

O fenômeno tem diversas facetas, que podem ser unificadas em torno da hipótese de “proeminência do foco”, que é uma organização sintática da frase que, em vez de privilegiar uma espécie de “mapeamento lógico” (sujeito – predicado), privilegia uma relação interacional, colocando na cabeça da sentença o elemento de que se quer falar (o tópico), independentemente de ser o sujeito, mas dando-lhe forma e posição que fazem com que pareça um. Vejamos dois exemplos:

a)As ruas do centro não estão passando ônibus (por: nas ruas do centro não estão passando ônibus / ônibus não estão passando nas ruas do centro);

b) Aqueles quartos só cabem uma pessoa (por: naqueles quartos só cabe uma pessoa / só cabe uma pessoa naqueles quartos).

Há vários fenômenos aqui: a) ocorre queda da preposição dos sintagmas locativos (adjuntos adverbiais de lugar) nas ruas e naqueles quartos, o que os “transforma em sintagmas nominais”; b) ocupam a posição típica dos sujeitos; c) o verbo concorda com essa “nova” forma (as ruas não passam / os quartos não cabem).

Uma descoberta interessante é que tal estrutura é típica das línguas bantas, das quais disse Chatelain (em Grammatica Elementar do Kimbundo ou Língua de Angola) que “quando, por inversão, o locativo acontece preceder o verbo, este concorda com elle, tomando-o como prefixo. Na inversão, o sujeito lógico perde toda influencia sobre o verbo, de modo que não importa a qual classe singular ou plural o sujeito pertença, contanto que seja de terceira pessoa” (ênfase de A & G).

Dados e fatos

Outros estudos acrescentam dados que corroboram a tese da influência das línguas africanas no PB. Gonçalves e Chimbutane mostram que o português falado como segunda língua por moçambicanos apresenta estruturas como Na igreja é pequeno, em que o locativo funciona como ‘sujeito’ (os estudiosos afirmam que essas formas são típicas das línguas maternas africanas). Ora, no PB elas são comuns, como se pode ver em (A & G fornecem mais exemplos):

c)na minha escola aceita cartão de crédito (a minha escola aceita …)

d) no curso ensina a fazer impressão de cartão de visita (o curso ensina …)

Esses dados mostram “que o PB compartilha propriedades com línguas do grupo Bantu no que diz respeito aos padrões de inversão locativa…”, padrão que não é usual em línguas indo-europeias.

Outro fenômeno de interesse é a chamada concordância possessiva, que pode ser informalmente descrita assim: o verbo concorda com um sintagma que é um termo adnominal (e não um ‘sujeito’), interpretável como possuidor, como se pode ver nos seguintes dados:

e)as crianças tão nascendo o dentinho (o dentinho das crianças tá nascendo)

f) conheço pessoas que fizeram isso e caíram o cabelo (… e o cabelo delas caiu)

g) eu tô ardendo as pernas (minhas pernas tão ardendo)

Resumindo os fatos e os argumentos: “os dois padrões de concordância (a locativa e a possessiva) mostram que a sintaxe do PB é, como a das línguas Bantu, bastante ‘liberal’ no que diz respeito à natureza do termo” que comanda a concordância verbal. É a conclusão de Avelar e Galves.

Esses fatos, que não podem ser negados (já disse em textos anteriores que negar os fatos da língua seria como um ornitólogo negar o bico do tucano, dizendo que é um erro), e sua análise, bastante consistente, mostram duas coisas: a) que não vale mais a pena insistir na afirmação de que nosso modelo deve ser o português de Portugal. Seria, além de fechar os olhos aos fatos, negar nossas raízes, pelas quais os portugueses foram responsáveis, aliás, na medida em que a colonização foi a que foi; b) que, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista pedagógico e cultural, teríamos que ser menos ranzinzas em relação à diversidade linguística, notadamente em relação à sintática, já que, como é notório, ninguém defende que adotemos a pronúncia de Portugal…

Falamos como falamos porque somos muito africanos!

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas