Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O monstro está nas ruas

Passadas três semanas desde que essa gigantesca e inédita onda de protestos ganhou as ruas, há motivos para festejar e lamentar. A festejar, a repentina presteza com que o governo e a classe política despertaram de sua malfadada letargia para ouvir e atender os clamores generalizados, que foram se alastrando a partir da mobilização do chamado Passe Livre, em prol da revogação do aumento das tarifas de ônibus. A lamentar, que manifestações legítimas e prementes venham descambando sistematicamente para ações que afrontam a ordem e as leis vigentes no país.

É óbvio que a coisa fugiu ao controle das incipientes e ainda não claramente delineadas lideranças do movimento, como a própria cúpula do MPL já sentiu, a ponto de admitir que a desordem e a baderna em manifestações públicas de grande porte são inevitáveis. De fato, quando a histeria se alastra ninguém segura, mesmo abaixo das famigeradas balas de borracha e bombas de efeito moral, ainda mais com uma polícia manietada, orientada a não intervir. Muito em função da verdadeira coação promovida por uma mídia acuada e oportunista, que prefere demonizar a ação policial a exigir que os excessos sejam contidos, doa a quem doer.

Afinal, quando não é mais possível vislumbrar quem são as pessoas de bem e os vândalos, exigir comedimento por parte da policia, diante dos saques, depredações e hostilidades gratuitas que se tem visto, é misturar alhos com bugalhos, jogar para a torcida, o que nada tem a ver com o exercício de um jornalismo que se preze. A mídia, mais do que as próprias autoridades, não poderia perder de vista o primado das leis, que deve prevalecer mesmo em situações de exceção, como a da presente mobilização popular, sob o risco de se tornar conivente com ações que estão muito mais para anarquia do que democracia.

Hostilidade contra repórteres

Direito de expressão, de sair às ruas para cobrar e protestar, é uma coisa; invadir, partir para a violência, depredação e até mesmo bloquear vias públicas e rodovias de grande circulação é transgressão, crime, e como tal deve ser tratado. E se a desordem e a baderna continuam se repetindo, nada mais natural que a polícia e, se for o caso, o próprio Exército, cumpram o seu papel institucional. Não, é claro, para reprimir ou sufocar os manifestos pacíficos e ordeiros, um direito inalienável do cidadão, mas para combater os vândalos e bandidos que encontraram no movimento o melhor dos cenários para agir livre e impunemente.

A ordem para não intervir recebida pela PM paulista, seguida na maioria dos estados, após a intervenção, na verdade exagerada, logo no primeiro dia de protestos do movimento do Passe Livre, pode ter agradado as vestais de fachada que defendem os direitos humanos, as minorias, os excluídos etc. etc., mas na prática a verdade é que a falta de policiamento é um convite à baderna. Há limites para tudo, e por mais que a causa justifique a mobilização e adesão maciça da sociedade, a rotina de transgressões e vandalismos que se verifica não ajuda em nada. Ao contrário, apenas aumenta a sensação de abandono e desamparo que aflige a população que, mesmo com razões de sobra para protestar, sofre com os abusos de uma escória que se dissemina à sombra da frouxidão das leis e inépcia de governantes e políticos que agora estão em xeque.

À mídia não basta a missão de relatar, retratar adequadamente os eventos históricos que sacodem o país. Não basta cobrir todos os detalhes das manifestações, dramatizar os fatos, como a televisão costuma fazer, com indiscutível competência. É preciso encontrar o tom, refinar o discurso, atinar com o tal foco que muitos cobram dos manifestantes, ao invés de tergiversar e andar de lado como tem feito. A exemplo dos governantes, a imprensa também foi pega de surpresa pela rapidez e contundência com que o movimento se alastrou pelos quatro cantos do país. Surpreendida e amedrontada diante das manifestações de hostilidade que ganharam corpo nas redes sociais e, mais dramaticamente, contra veículos de emissoras e repórteres que cobriam as passeatas.

Inferno astral

Poucas vezes se viu a imprensa tão enrolada na tarefa de destrinchar quais seriam as motivações e os rumos do movimento que tirou o país de sua secular e vergonhosa apatia. Uma guinada tão súbita e inesperada quanto radical, por rejeitar tutelas e influências de ordem ideológica e política, a ponto de não poupar nem a presidente Dilma e petistas que ensaiaram a politização do movimento. Algo impensável até outro dia, dado o alto índice de aprovação acumulado pela presidente e favorita disparada à reeleição no pleito do próximo ano.

Incapaz de detectar a gestação de um movimento tão avassalador, espontâneo e apolítico, fruto da insatisfação acumulada há décadas, a imprensa formal se embananou à medida que as manifestações se agigantavam. Num primeiro momento, não sabia se ficava contra ou a favor. A hostilidade demonstrada nas ruas contra as emissoras e os recados online aos demais resolveram o dilema: melhor ficar em cima do muro. Definitivamente, as massas dispensavam mentores e tutelas, tinham como catalisador, não a imprensa velha e cansada de guerra, mas as novas mídias, as redes sociais até então subestimadas, vistas por muita gente como coisa de desocupados.

Redes sociais – o Facebook, em particular – que conseguem em horas o que até pouco tempo atrás levava meses, anos até, para surtir efeito. Ignorar ou desdenhar esse potencial de mobilização que vem não só estreitando as relações como alavancando mudanças, levantes, mesmo em países mais fechado, com censura e tudo, é dar sopa para o azar, perder a perspectiva das coisas. O que, no momento histórico que atravessamos, explica o desconforto, a saia-justa, e em muitos casos, o inferno astral que se abateu sobre tantas instituições e personagens que se julgavam inatingíveis, imunes aos normalmente previsíveis humores da opinião pública.

Última trincheira

Inevitável que respingasse na Copa da Confederações, na Fifa e na manjada turma de garotos-propaganda encabeçados por Ronaldo e Pelé, que enchem ainda mais os bolsos em cima de eventos cujos custos exorbitantes são agora questionados. Com a pauta de reivindicações aumentando a cada dia, a perspectiva de volta à normalidade parece distante, ainda mais com a percepção do temor e despreparo do governo para lidar com demandas dessa natureza. O medo da opinião pública é tão evidente que a desordem e a dilapidação do patrimônio público e privado são tolerados como se tudo pudesse ser debitado nas costas da democracia. Não pode. Ou não poderia, pois se o Estado consegue absorver os prejuízos causados pelos vândalos e bandidos infiltrados no movimento, o mesmo não acontece com o cidadão comum, o comerciante que tem sua loja invadida, sem ao menos ter o consolo de ver a justiça sendo feita.

Ver a justiça sendo feita… Porque é tão difícil que uma coisa tão básica e necessária seja viabilizada de acordo com o anseio popular? O que impede que um Código Penal antiquado e permissivo continue vigorando, ao mesmo tempo em que crimes bárbaros, como o assassinato desse menino boliviano de cinco anos, numa expressão da mais absoluta crueldade, se repitam cada vez mais frequentemente? Pesquisas feitas em programas especializados mostram que a esmagadora maioria da população aprova não só a redução da maioridade penal, mas a adoção de penas mais rigorosas, como a própria pena de morte para certos crimes hediondos.

O que mais falta acontecer para botarem mãos à obra? Para quê plebiscitos, essa falácia de constituinte, se as reivindicações – pelo menos as mais importantes – estão na boca de todo mundo? Chegou a hora de governantes e parlamentares honrarem seus mandatos viabilizando as medidas que todos esperam com presteza e transparência, até mesmo para evitar que as manifestações continuem causando transtornos e prejuízos generalizados. Prejuízos que só tendem a agravar os problemas que já se avolumam na área econômica, por sinal, a última trincheira de sustentação do governo Dilma.

E, falando em última trincheira, seria bom que a imprensa também fizesse sua parte, saindo de cima do muro, deixando o maniqueísmo obsoleto de lado, pois, como advertia o veterano jornalista Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S.Paulo na semana passada, evocando o falecido ex-presidente Juscelino: o monstro da opinião pública está solto. Agora, quem segura?

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP