Os conservadores estão errados, tanto os da esquerda quanto os da direita. Não há mais no horizonte o “comunismo”, como no passado. Não há, ao menos aqui, o “terrorismo”, que faz as democracias recrudescerem. As forças militares do país não estão sendo provocadas. Ninguém do governo ou da oposição participa de qualquer ato que incentive quebra de hierarquia ou disciplina dentro dos quartéis. Não há liderança civil ou militar, jovem ou velha, falando em desestruturação do Estado de direito. Os dois ex-presidentes, Lula e FHC, foram unânimes em dizer que não se deve desqualificar o movimento de protesto, e sim, ouvi-lo e atendê-lo. Por tudo isso, então, é fácil dizer: não há golpe militar ou desestruturação do Estado de direito no horizonte brasileiro.
Sendo assim, realmente ainda não entendi qual a razão de tanto medo e tanto conservadorismo por parte do meu amigo Luiz Felipe Pondé na TV, no programa do William Waack, da Rede Globo. Tanto quanto a militância do PT, ele acredita que os protestos que formam a Primavera Brasileira, e que eu chamo de a “revolução do indivíduo”, estão criando o caos que irá derrubar nossas instituições democráticas.
Acho que Pondé não analisou com cuidado a situação, enquanto os petistas apavorados analisaram até demais. Não analisando a situação de modo acurado, Pondé se deixou levar pelo seu conservadorismo natural, enquanto os petistas, analisando a situação mais do que o necessário, estão antes preocupados com os cargos que podem perder em eleições próximas, se o governo federal se desgastar demais. É isso que faz com que esses adversários entre si, no frigir dos ovos, pensem de modo igual e comecem a ver fantasmas de golpe onde nem mesmo Gasparzinho, o fantasminha camarada, está aparecendo para fazer seu “buu!”.
Equipe de revezamento que não se reveza
As ruas falantes já estão produzindo efeito objetivo. O governo federal está tentando um diálogo e já se fala em “agenda positiva” no Congresso. Mas a verdadeira revolução está em curso e ela está se dando no campo subjetivo. Fernando Henrique Cardoso, na TV, falou corretamente ao dizer que os jovens estavam isolados e descrentes, mas que se encontraram nas ruas ao encontrarem o outro. Talvez ele esteja pensando na interação intersubjetiva, que é um modelo que vem à cabeça de um sociólogo bem formado como ele. Da minha perspectiva, a descrição de tudo o que estamos vivendo nesses protestos não é oposta, mas é diferente.
Todos nós que estamos indo às ruas não estamos interagindo e montando nossos “eus” a partir da interação. Nem mesmo, de modo principal, estamos ampliando nossa identidade de cidadãos, ainda que isso também possa estar se dando. O que está ocorrendo é que estamos praticando o filosofar andando, estamos nos exercitando, repetindo a cada dia o que fizemos no dia anterior, no protesto que já se fez passado. Essa experiência cinestésica de pensar andando é justamente o oposto que escutamos os outros contarem que faziam. Até então, a metáfora foi a do “parar para pensar”. O modelo adotado, desse modo, era o do Pensador, de Rodin. O modelo adotado por nós não é o de Rodin, mas o do Renascimento, o de Rafael. Nosso paradigma visual é o quadro “A escola de Atenas”, em cujo centro estão Platão e Aristóteles filosofando peripateticamente. O pensamento é dinâmico como o andar é dinâmico. Esse é o exercício do protesto. Nada de mesa ou organização prévia, que faz com que uns pensem pelos outros. Nada de palanque para ouvir e obedecer aqueles que já pensaram e que, então, não nos deixam pensar. O modelo renascentista, e não o moderno, é o nosso modelo, é o de andarmos e, como não temos “palavras de ordem” unificadas ou previamente dadas, então podemos criá-las durante o movimento. Todos pensam, todos andam, correm, todos exercitam o protesto para que amanhã o protesto possa ser mais familiar e segundo uma performance melhor. Nossa lógica de autoconstrução é aquela lembrada antes por Peter Sloterdijk que por Habermas. Não estamos em uma comunidade linguística que favorece a intersubjetividade, mas em uma corrida coletiva de troca de bastão que favorece a própria corrida se retroalimentando. Somos antes uma equipe de revezamento que não se reveza, e não de papagaios que porque falam acreditam que pensam.
Velocidade e desvio
Olhando assim, por essa via, podemos entender o quanto esses protestos, essa “revolução do indivíduo”, deve mesmo causar espanto aos petistas e em Pondé. Não passava pela cabeça deles e, confesso, nem pela minha, é claro, que iríamos dispor nossos corpos de modo diferente e, então, gerar um protesto com outra dinâmica corporal e mental. Adquirimos a velocidade de pensamento e de ação do meio que nos uniu: a internet. Não temos que parar para refletir, vamos refletindo juntos segundo os nossos passos um tanto desordenados e sem qualquer compasso ou tambor. Vamos alcançando objetivos parciais que surgem no caminhar. Pela primeira vez, de fato vale o refrão do passado, que quando foi usado nem tinha muito cabimento: encontramos o caminho caminhando.
Os protestos estão ganhando os mais diversos temas e fazem com que os conservadores cheguem até a pensar que, assim fazendo, eles não têm legitimidade. Só as manifestações com foco prévio, preparadas por quem exercita o “parar para pensar”, é que seriam os movimentos com legitimidade. Mas mostramos que não é assim que fazemos. Nosso exercício é novo. Nesse exercício, não podemos parar. Pois se paramos, aí é que não pensamos, ou não pensamos como temos que pensar. Somos pessoas da velocidade e do desvio. Somos os que saíram da relação por wireless e fibras óticas. Somos do século 21, os dos séculos anteriores estão mesmo com dificuldade de nos entender. Ficaram velhos.
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Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRJ